A
crônica que reproduzimos abaixo é da autoria de Leon Eliachar.
Para
saber mais sobre o autor, favor consultar: http://www.releituras.com/leoneliachar_bio.asp.
Boa
leitura!
O PILEQUE
Airton
saiu da boate cambaleando, não viu quando um automóvel quase o pegou. Não viu,
mas ouviu:
-
Sai da frente, ó palhaço!
Riu
sozinho, porque nem levou susto. Olhou para o alto, viu uma porção de janelas
iluminadas, como se fossem manchetes da solidão que domina Copacabana, às
quatro da madrugada. Queria ir pra casa, mas não se lembrava onde morava. Seus
amigos quiseram colocá-lo num táxi:
-
Deixa que sei ir sozinho.
Veio
andando, andando, sem rumo certo, duas moças o abordaram:
-
Esta sem sono, meu bem?
Airton
disse um palavrão, ouviu dois, saiu resmungando, esbarrou num guarda:
-
Tem fogo ai, o meu chapa?
O
guarda acendeu seu cigarro, aproveitou pra filar um, tentou puxar um papo mas
Airton preferiu continuar andando. Agora o dia já estava clareando, o sol
vermelho esticava as sombras de algumas pessoas que começavam a sair e ele
ainda nem tinha voltado. Sentou-se no degrau de um edifício, chegou um homem
pra reclamar, dizendo que era contra o regulamento. Airton achou graça do
regulamento, porque o homem era um lavador de automóveis e estava complemente
nu. Levantou-se, sem discutir, levou de sobra os respingos da mangueira, mas
não perdeu a pose:
-
Quanto é a lavagem?
Continuou
andando, entrou num boteco:
-
Média, pão e manteiga.
Comeu
devagarinho, pagou, misturou-se com a multidão de homens e mulheres apressados
que tentavam condução para o trabalho. Sentiu-se diferente dos outros, quis
ficar com pena deles, mas acabou com pena de si mesmo, quando percebeu que
estava com um dia de atraso: os outros já estavam vivendo o dia seguinte e ele
ainda estava no ontem.
-
Táxi! Táxi!
Saltou
na porta de casa, decidido de que este seria o seu último pileque. Abriu a
porta com cuidado, entrou devagarzinho, sem fazer o menor ruído. A mulher já
estava na cozinha, preparando o café das crianças:
-
É você, Airton?
Não
teve outro jeito:
-
Sou eu. Tive de fazer serão novamente, acabei num bar com os amigos, juro que
foi a ultima vez, meu bem.
A
mulher não disse uma palavra, deu-lhe um copo de leite:
-
Acho bom você dormir um pouco, deve estar muito cansado.
Ele
passou pelo quarto dos meninos, deu um beijo na testa de cada um. O menorzinho
acordou, bocejando:
-
Você já vai trabalhar, papai?
Sentiu
vergonha de ser marido, de ser pai, de ser chefe de família. Retirou-se para o
seu quarto, vestiu o pijama, cerrou as cortinas, para que a escuridão
envolvesse o seu drama. Ficou pensando em Nina, sua amante, comparou-a com a
mulher. Há três anos que a conhecera e há duas semanas que havia decidido
romper, definitivamente, para salvar o seu lar. Mas não conseguia esquecê-la,
dai ter apelado para a bebida. Saia sozinho, todas as noites, voltava de
madrugada, não sabia sequer se a mulher aceitava suas desculpas ou se o
aceitava assim mesmo como era, porque o amava muito. Não conseguia dormir, não
conseguia trabalhar, não conseguia mais nada. Deitava-se às oito da manhã,
levantava-se as duas. Há quinze dias não almoçava nem jantava em casa e sua
família não merecia isso. No escritório, resistia a tentação de uma
reconciliação com "a outra":
-
Diz que não estou.
À
noite era um desajustado, um homem incompatibilizado consigo mesmo, tentando
lavar com a bebida um passado ainda recente. Entrava nas boates, juntava o seu
drama a outros dramas semelhantes, na efervescência do álcool. Todos sorriam,
mas ninguém levava o sorriso pra casa. Pior que o cansaço, a insônia.
Levantou-se, trocou novamente de roupa, foi tomar café com a mulher:
-
Você não vai dormir, meu bem?
Sentiu-se
forte com a doçura e a compreensão da mulher:
-
Não tenho sono, preciso decidir um negócio muito importante hoje.
Tomaram
café, ele saiu apressado. À noite, trouxe balas para os filhos e flores para a
mulher. Jantaram juntos, com luz de vela. De madrugada, ao lado de seis
garrafas de champanha vazias, os dois estavam caídos, também vazios. Acordaram
quase juntos, com o primeiro raio de sol. Ela apertou sua mão, com um sorriso
feliz, ele disse, sem virar o rosto do chão:
-
Meu Deus, já é dia claro, tenho de voltar pra casa!
Fonte:
http://www.releituras.com/leoneliachar_opileque.asp
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