O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
2ª
Parte - Capítulo III
DOR
E LOUCURA
Quando
o doutor George, o jovem psiquiatra, chegou ao palacete do conde Fernando, o
sol declinava no horizonte e a grande e velha construção estava banhada pelos
tons avermelhados do crepúsculo.
O
mordomo veio ao encontro do médico, seguido de um camareiro que se encarregou
de levar para cima sua bagagem, conduzindo-o aos aposentos que lhe estavam
destinados.
Pedro,
depois da elevada gratificação que recebera de seu patrão, graças a Maria
"Flor de Amor", pensara em demitir-se d eseu emprego e ir viver o
resto de seus dias descansando. No último instante, porém, não tivera coragem
de abandonar aqueles lugares onde vivera tantos anos, preferindo adquirir uma
pequena casa nas imediações do palacete, onde passasse a viver, mais tarde,
tranquilamente, quando já não estivesse mesmo em condições de trabalhar.
Enquanto
isso não acontecesse, sendo incapaz de ficar na ociosidade, continuava a
exercer sua profissão.
-
O conde está no palacete? - perguntou George, seguindo o mordomo no vestíbulo.
-
Não, senhor. Teve de ir à cidade, para tratar de um assunto importante e ainda
não regressou. Mas como me havia avisado de que o senhor doutor deveria vir,
preparamos tudo.
-
O senhor é o mordomo, não?
-
Sim, senhor. Chamo-me Pedro.
-
Eu sou o doutor George Brancion - disse o médico. - Sabe por que estou aqui?
-
Sei, senhor doutor. Para tratar da pobre senhora dona Marta.
-
Onde está ela agora?
-
No pavilhão que fica no centro do jardim.
George
se voltou para o velho servidor, um pouco admirado.
-
Mas, então, não está no palacete?
Pedro
desviou o olhar do rosto do médico, evidentemente encabulado. Depois,
encorajado pela maneira espontânea do hóspede, absolutamente destituída de
austeridade profissional, disse:
-
A enfermidade da senhora Marta é muito grave, senhor doutor... Ou pelo menos
assim me parece... Porque... Ela grita, grita muito, especialmente à noite. Se
durante a noite os servidores da casa começassem a ouvir aqui dentro gemidos e
gritos, esse temor que lhes inspira a louca acabaria se transformando em
terror. E ninguém quereria trabalhar aqui. Eu, por mim, não sou pessoa
impressionável, mas as criadas...
-
Sim, compreendo - disse George - A propósito, Pedro - acrescentou, depois de um
instante de reflexão - os aposentos que me foram destinados são aqui dentro do
palacete?
-
São, senhor doutor.
-
Mas eu prefiro ficar instalado perto da minha doente. Veja se pode transportar
minhas coisas lá para o pavilhão, onde naturalmente haverá um quarto livre para
me ser destinado. Quero ficar, como disse, perto da doente.
-
Mas, doutor, ali não terá a metade do conforto e da comodidade que terá aqui no
palacete, onde lhe preparamos um apartamento completo. Além disso, no pavilhão
já está a enfermeira...
O
doutor George fez um gesto de indiferença:
-
Nada disso tem importância - replicou ele. - Eu não necessito de muita coisa
para estar confortável e, como já expliquei, preciso estar em contato direto
com a minha paciente. Tenho que estudar as suas reações durante as crises e
fora delas, ou, então, não ficarei habilitado a conhecer o seu verdadeiro
estado.
O
mordomo abriu os braços, conformado.
-
O senhor é quem sabe, senhor doutor. Tomarei imediatamente todas as
providências para satisfazê-lo. Por enquanto, porém, quer aguardar aqui? Dei instruções
para que lhe fosse servida uma refeição nesta sala, porque receei que o doutor
se sentisse entediado, sozinho, no grande salão de refeições.
Entrando
na sala que lhe era indicada, onde já havia uma elegante mesa redonda posta
para uma pessoa, George falou:
-
Há muito tempo está nesse estado a minha cliente?
-
Há muito, doutor. Muito tempo. Quase vinte anos...
-
Você a conheceu, antes de adoecer?
-
Sim, sim... Ela era noiva do conde Fernando. Ninguém sabia disso, naturalmente,
porque ela era de diferente condição social, mas eu gozava, como até hoje me
posso gabar, da inteira confiança do conde e ele me mandava, inclusive, à casa
dela, para lhe levar braçadas de tulipas que eram colhidas no jardim do palácio
e que ela apreciava imensamente.
George
sentou-se à mesa, pensativo.
-
Vou perguntar-lhe uma coisa, Pedro, e não pense que o faço por curiosidade. Um
psiquiatra deve sempre estar a par de todo o passado de seus doentes e dos
motivos que determinaram a perturbação mental.
-
Pergunte-me o que quiser, senhor doutor! Estou pronto a fazer o que estiver ao
meu alcance em favor da senhora Marta!
-
Quando essa senhora começou a manifestar os primeiros sinais de alienação
mental, isto é, de loucura? Quero dizer: foi depois de alguma doença ou como
seguimento a algum choque ou emoção violenta?
-
Ah! Senhor doutor... Isso é uma longa estória, da qual eu não conheço senão uma
parte...
-
E não poderá me contar essa parte que conhece? Sente-se Pedro, não fique em pé. Eu não sou nenhum
conde, não sou de cerimônia.
O
ancião, visivelmente satisfeito, obedeceu.
-Foi há muitos anos – começou ele: - Lembro-me muito
bem... O conde Fernando, como era seu hábito, havia saído de charrete para ir
ao encontro da senhorita Marta e eu estava certo de que só regressaria à noite,
como acontecia sempre que saía para visitá-la. Ao contrário do que eu esperava,
no entanto, uma hora depois, ele estava de volta e ordenou-me, sem mais
explicações: “Pedro, prepare a minha bagagem. Vamos viajar imediatamente. O ar
desta cidade é agora para mim irrespirável”. A ordem era tão imprevista que eu
fiquei confuso, até porque não sabia para onde viajaríamos e não sabia que tipo
de roupas devia pôr nas malas do meu patrão, se roupas frescas, convencionais,
apropriadas para praias, ou roupas pesadas de tipo esporte, no caso de ser a
viagem para um lugar como os Alpes Suíços. Tratei de perguntar-lhe, mas ele,
falando num tom que eu nunca ouvira antes, respondeu: “Trate de fazer o que
mandei, sem perguntas! Não sei para onde iremos, mas quando chegar aí, quero
que tudo esteja pronto!” Assustado com aquele modo de falar, que desconhecia,
vendo que o conde estava nervosíssimo, botei os outros empregados em atividade
e de fato, vinte minutos depois, as malas já estavam alinhadas no vestíbulo,
prontas para serem levadas. Pela expressão severa e amargurada de seu
semblante, compreendi que alguma coisa muito grave devia ter acontecido ao
senhor conde... Estava pálido como um defunto, tinha os cabelos em desalinho e
nos olhos uma expressão estranha, pois pareciam querer saltar-lhe das órbitas.
Ah! Jamais esquecerei aquela tarde! Como nos havíamos todos colocados, à sua
disposição, aguardando ordens, ele se irritou tremendamente e gritou: “Que
estória é essa de todo mundo a me olhar? Sumam! Desapareçam!... Não quero ver
ninguém!” Depois subiu rapidamente os degraus da escadaria e foi se encerrar no
quarto, sem mais falar nem em bagagem nem em viagem. Enquanto os servidores se
perdiam em mil conjeturas, procurando descobrir a explicação para seu
comportamento, verdadeiramente estranho num homem como ele, sempre distinto,
sóbrio, delicado, até amável conosco, subi eu ao andar superior e fiquei a
caminhar de um lado para outro diante da porta do quarto dele, esperando que a
qualquer momento ele me chamasse. Foi, então, que, a princípio fracamente,
depois aumentando cada vez mais, ouvi seus soluços cheios de dor... E logo a
seguir ouvi que ele falava; com voz alterada, rouca, sufocada, que aos meus
ouvidos chegava entrecortada e dolorida: "Marta!... Marta!... Como pôde...
Como pôde fazer isso?... Eu a adorava, eu a venerava e você me traiu!... Você
se comportou da maneira mais abominável, mais repulsiva que se possa
imaginar!" Foram exatamente estas... as palavras que pronunciou, -
continuou o fiel mordomo, que se mostrava triste e sofredor, ao recordá-las,
depois de tantos anos passados. - E então eu pude compreender, pelo que estava
ouvindo que algo muito grave devia ter acontecido entre ele e a senhorita
Marta. Do quanto havia escutado, compreendi que ela procedera qualquer
comportamento condenável, fizera alguma coisa terrível, mas custava
acreditá-lo, tão boa pessoa ela me parecia, bondosa, gentil, angelical, incapaz
de fazer mal a quem quer que fosse. Essa foi a impressão que eu tive dela das
vezes em que a vi... O conde Fernando continuou naquela situação durante dois
dias, depois se decidiu a partir para os Alpes Suíços, onde permaneceu, aliás,
pouco tempo, sem querer a companhia de ninguém. Sozinho com a sua dor, o conde
se entregava a longas escaladas arriscadíssimas, que pareciam ser a única coisa
capaz de lhe acalmar os nervos. Da senhorita Marta, nunca mais soube nenhuma
notícia e seu nome nunca mais foi pronunciado no palacete. Por algum tempo,
acreditamos que o conde tivesse decidido levar mesmo, para o resto da vida,
aquela existência retirada e solitária de eremita. Mas não foi assim que as
coisas se desenrolaram. Um mês depois do inexplicável acontecimento, para sua
infelicidade, estava ele casado com a marquesa Renata Duplessis...
Pedro
se calou e George não quis indagar por que ele dissera "para sua infelicidade",
quando se referira à marquesa Renata.
-
E isso é tudo quanto você sabe acerca da doente? - perguntou George.
-
É só o que sei, senhor doutor...
O
médico sacudiu a cabeça, estranhando:
-
É muito pouco, não acha? - perguntou por sua vez o mordomo...
-
Não, Pedro. Posso tirar alguma conclusão do que você me contou. Agora, por
exemplo, já sei que a minha paciente não perdeu o juízo como consequência de
nenhuma dessas doenças que tanto afligem a humanidade, mas sim por causa de uma
comoção fortíssima, de um choque emocional que lhe afetou a mente. Com este
ponto de referência por base, já posso me orientar melhor acerca do tratamento
que lhe deverei ministrar.
O
velho deu de ombros, sem dar demonstração de muita confiança na eficácia de
qualquer tratamento.
-
Já trataram dela de tantas maneiras e nenhuma deu resultado...
George
sorriu, sem nenhum ressentimento por aquelas palavras, que demonstravam
claramente o ceticismo do mordomo e a pouca fé que depositava nos médicos.
-
A ciência é vasta, meu caro, e os conhecimentos dos estudiosos aumentam dia a
dia - explicou o jovem médico. - Não se deve nunca perder a esperança. A
medicina progride a passos rápidos...
-
Isso é verdade, doutor. Desculpe-me - disse o mordomo, contrafeito.
-
Não há o que desculpar, Pedro. Mas... Gostaria de saber outra coisa: como foi
que a senhora Marta veio parar aqui, no palacete? Como o conde a reencontrou?
-
Puro acaso, doutor. Após algum tempo, o senhor conde Fernando soube que a
senhora Marta estava internada na clínica do doutor Démon e então ele resolveu
tirá-la dali e trazê-la para o palacete...
-
Doutor Démon?... Esse nome não me é estranho...
-
Naturalmente, doutor... Ele mantém um sanatório para doentes mentais, no meio
do bosque, um bocado retirado, sanatório que não goza de muito boa fama, aliás.
-
E a louca, em que condições se encontra?
Um
esgar doloroso contraiu o rosto do bom servidor do conde.
-
É horrível, doutor, verdadeiramente horrível!... Ninguém, que a conheceu antes,
como eu, descobre na infeliz qualquer traço do que foi! Os cabelos
embranqueceram completamente. Curioso, porém, é que a pele conserva ainda
alguma coisa do frescor antigo, embora esteja ela magra que é só pele e
ossos... Os olhos são de uma criatura alucinada e a gente se sente mal, sente
um arrepio, quando ela nos fita com aquela dureza...
-
Compreendo - disse o doutor George. - Compreendo... Mas é estranho que, tendo
ficado tanto tempo internada no tal sanatório, justamente de doenças mentais,
não tenha apresentado nenhum sinal de recuperação, nenhuma melhora...
-
Por isso, justamente, senhor doutor, é que nós pensamos, eu, pelo menos penso,
que já não há nenhuma esperança de cura para a pobre senhora Marta.
O
psiquiatra, com inesperada decisão, ergueu-se e disse:
-
Gostaria de ir vê-la agora. É possível?
-
Mas, doutor, o senhor vai jantar... - protestou Pedro.
-
Não tem importância, terei muito tempo, depois, para pensar nisso. Mostre-me o
pavilhão onde ela se encontra, por favor.
-
Como queira, doutor...
O
mordomo guiou o jovem psiquiatra pelas alamedas do jardim, já bastante escuras
com a aproximação da noite, George, embora pensativo e preocupado, não pôde
deixar de admirar a beleza do jardim, a grande variedade da vegetação e o
cuidado com que canteiros e plantas ornamentais eram conservados. O pavilhão
emergia de um perfumoso grupo de tílias. Pedro fez entrar o médico na sala em
que Denise, certa vez, já estivera, em companhia do conde Fernando, e bateu na
porta do quarto de Marta, que logo a seguir foi aberta pela enfermeira. Esta
deu ao médico algumas informações sumárias sobre o estado da demente, condições
gerais, é claro, porque quando ele estendeu o interrogatório para seu
comportamento, a enfermeira se limitou a responder:
-
Que quer o doutor que eu lhe diga? É melhor esperar para ver.
O
médico, então, virou-se para o mordomo e disse:
-
Pois então, meu bom Pedro, conforme conversamos, queira arranjar para mim um
aposento aqui no pavilhão. Quanto ao jantar, por hoje não aceito nada; comi
algo em casa, antes de vir.
E,
para a enfermeira, ajuntou:
-
Prefiro estar sozinho na minha primeira visita à doente. Se não se incomoda,
queira esperar aqui fora, sim? Se eu precisar da senhora, chamarei.
-
Está bem, doutor...
Quando
o doutor George fechou atrás de si a porta do quarto de Marta, a enfermeira
disse ao mordomo:
-
É este, então, o psiquiatra que estavam esperando?
-
Sim. É o doutor George Brancion.
-
Duvido muito do resultado do tratamento dele! É muito jovem!
-
Pois a mim - disse Pedro - não sei por que, ele inspira confiança...
-
Bem... Vamos esperar para ver!
Será que George vai desvendar as falcatruas de Denise e Renata? Vamos ver... A história está ótima!
ResponderExcluirPaulo, acho que George não sabe a verdade sobre a clínica do Dr. Démon, que pena! Será que ele vai poder fazer algo por Marta? Será que vai pensar que Maria é falsa como Fernando e Luís Paulo pensam? Muito bom! Bjs.
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