O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
2ª Parte - Capítulo II
AQUELA QUE NÃO SE DEVE AMAR
Quando George partiu de carruagem, rumo ao palacete
do conde Fernando, a senhora Dorotéia, sem maiores delongas, foi ao quarto de
Maria "Flor de Amor". Encontrou a moça de pé em frente da janela,
olhando absorta para fora e lhe disse:
- Querida, tenho uma coisa importante, muito
importante, para lhe dizer...
- De que se trata, senhora? - perguntou Maria
"Flor de Amor".
- Como sabe, gostei tanto de você... Responda-me:
está satisfeita, sente-se bem em nossa casa?
- Mas é claro, senhora! Por que me pergunta isso?
- E que me diz se um laço mais estreito vinculasse
sua existência à nossa?
Maria "Flor de Amor" piscou os olhos
várias vezes, sem entender direito.
- Que quer dizer com isso, dona Dorotéia?
- Meu filho está apaixonado por você, querida, e
gostaria de desposá-la.
A velha senhora, como, aliás, todas as mães, fizera
do filho uma espécie de semideus, e por isso esperava ver a jovem acolher suas
palavras com alvoroço e alegria, com verdadeira exultação. Em vão, porém, procurou
no semblante triste de Maria "Flor de Amor" um simples sinal de
contentamento.
A moça ficou silenciosa, de cabeça baixa, confusa
como uma pessoa culpada.
- E então, minha filha? - insistiu a mãe de George.
- Não ouviu o que eu disse?
- Ouvi, sim, senhora...
- E não me responde?
- Infelizmente, a minha resposta não pode ser a que
o seu filho deseja...
Sinceramente desolada, a senhora Dorotéia se
aproximou da mocinha e indagou:
- Maria "Flor de Amor"... Por que isto?
Tenho desejado tanto que você e George se viessem a gostar, a se casar, a serem
felizes... Quer ao menos dizer-me o motivo pelo qual recusa a proposta de meu
filho?
A jovem enxugou com um lencinho duas lágrimas que
lhe haviam descido pelas faces, brotadas daqueles olhos tão lindos e amendoados...
- Amei uma única vez em minha vida - murmurou - e
fui tão infeliz que ainda está viva em mim a inapagável recordação e não quero
que ninguém mais compartilhe a minha infelicidade...
- Mas isto não é motivo suficiente...
- Oh! É sim senhora! Infelizmente é!... E depois,
perdoe-me, embora seu filho tenha todas as qualidades, tudo o que há e pode
haver de bom num homem, eu não o amo! Sinto por ele grande simpatia, afeto
fraternal, imensa gratidão, enorme respeito, mas não amor... Meu coração não
tem mais amor para dar depois da dolorosa experiência por que passou.
Dona Dorotéia tomou entre as suas a mãozinha branca
da moça e acariciou-a de leve.
- Pense bem, menina... Está certa de que não poderá amar
meu filho? É a sua última palavra?
- É, dona Dorotéia...
- George ficará imensamente triste quando eu lhe
disser qual foi a resposta que me deu. Será um grande golpe para ele, coitado,
que já vinha fazendo projetos, alimentando tão bonitos sonhos... Permita que,
pelo menos por algum tempo, eu lhe diga que você não pode dar uma resposta.
Tremendamente emocionada, Maria "Flor de
Amor" baixou os olhos, acenando com a cabeça, em sinal afirmativo.
Algumas horas depois, George estava de regresso.
Quando na sua charrete o médico chegou diante de sua casa, percebia-se que
estava satisfeito e feliz, abraçando alegre e amorosamente a sua mãe, que saiu
a correr para o jardim, ao seu encontro.
- Então, que combinou com o conde Fernando
Chanteloup? - perguntou a velha senhora.
- Tudo acertado, mamãe! Ele deseja que eu vá ficar
morando por algum tempo no seu palacete para melhor acompanhar as reações
psíquicas da doente e os resultados do tratamento.
- E você? Aceitou?
- Bem... Mamãe... Acontece que os honorários que ele
estabeleceu são tão... Terrivelmente compensadores que, mesmo se eu já não
tivesse um particular interesse por esse caso, teria aceito de qualquer modo...
O jovem facultativo olhou em torno, com ar sério,
depois perguntou à mãe:
- Conversou com Maria "Flor de Amor"?
Disse-lhe que eu gostaria imensamente de casar-me com ela?
- Conversei, meu filho...
A expressão da senhora Dorotéia era um pouco triste,
e este detalhe não escapou ao doutor George, que, com a fronte enrugada por
visível preocupação, murmurou:
- Disse que não, não foi?
- Meu querido, não foi bem assim... Pediu tempo para
pensar, para refletir, eis tudo. E, afinal, eu lhe dou razão, pois vocês se
conhecem há tão pouco tempo...
Um brilho de esperança surgiu nos olhos do médico.
- Então nem tudo está perdido ainda... Durante o
tempo em que eu estiver ausente, ela poderá refletir, sentirá a minha falta,
pensará nas vantagens e desvantagens do que lhe propus... Não acha?
- Certamente, meu filho, certamente! - apressou-se a
responder a bondosa mãe, satisfeita por vê-lo mais calmo. - E quando você se
muda para lá?
- O mais breve possível. O conde Fernando deseja que
eu inicie meu trabalho imediatamente, dedicando-me a observar as reações da
doente e os efeitos do tratamento que vou fazer. Acho que vou para lá ainda
esta noite.
Em seguida, George subiu para seu quarto, seguido da
mãe, a fim de preparar as malas.
- Naturalmente - disse, quase para si mesmo - minha
intenção de casar-me com ela, apanhou-a de surpresa, foi uma coisa com que não
contava... Deve-se ter sentido perturbada, coitadinha, não acha, mãe?
- Sim, realmente, ficou admirada... Mas, meu filho,
é melhor esperar. Na próxima vez que você vier aqui, conversaremos sobre isto.
Assim acomodando as coisas, a senhora Dorotéia viu
que o filho tirava de uma gaveta um pequeno embrulho que, como quem pega num
objeto de culto, passou para a maleta que arrumava.
- George, que é isso aí? - perguntou cheia de
curiosidade.
O jovem facultativo demorou uns segundos para dar a
resposta, como um garoto surpreendido numa traquinada, desejando burlar quem o
interroga sobre sua culpa. Depois, sem dizer palavra, apanhou o embrulho e o
entregou à mãe.
O embrulho continha um retrato emoldurado de Maria
"Flor de Amor", que George, poucos dias antes, desenhara com rara
habilidade, sem que ela o notasse. Estando a jovem sentada no jardim lendo um
livro e ele na janela do consultório.
- Como você é malandro!... - disse a velha senhora,
esforçando-se para sorrir, embora tivesse lágrimas nos olhos. - Bem... Arrume
as suas malas, enquanto vou preparar alguma coisa para você comer antes de ir
embora.
- Obrigado, mãezinha. Estou realmente faminto...
Apenas, porém, a senhora Dorotéia saiu do quarto, a
expressão do seu rosto modificou-se totalmente, de alegre que se vinha
mostrando, tornou-se séria.
Por algum tempo ficou imóvel, com os braços caídos
ao longo do corpo, sem tocar na maleta, refletindo... Finalmente, George se
movimentou como quem adota uma decisão repentina e tomou a direção da porta,
dizendo a si mesmo:
"Tenho que lhe falar, agora mesmo. Não poderei
trabalhar sossegado, nem permanecer tanto tempo longe de casa sem sequer haver discutido
o assunto com ela."
O quarto de George era situado bem defronte do de
Maria "Flor de Amor" e, quando justamente ele ia saindo, a moça, por
acaso, estava fechando a porta do seu, naturalmente, com a intenção de descer e
ir ajudar dona Dorotéia nos preparativos da refeição para ele.
- E então, Maria "Flor de Amor"? Está
melhor, agora? Passou o seu mal-estar?
- Estou, obrigada. - Respondeu a moça, sorrindo
timidamente.
O médico se aproximou e segurou-a delicadamente pelo
braço, murmurando:
- Que acha de darmos uma volta pelo jardim?
"Flor de Amor" procurou esquivar-se ao
convite.
- Mas... A senhora sua mãe está precisando de mim...
Acho melhor eu ir ter com ela, se você não se aborrece.
- Oh! Mamãe nunca tem necessidade do auxílio de
ninguém, sabe defender-se sozinha, principalmente para fazer uma comidinha de
nada. E até nem gosta que a atrapalhem, quando está na sua cozinha... E não
esqueça que a empregada também pode ajudá-la...
- Bem... Então vamos - disse Maria, cedendo, embora
a contragosto, em acompanhá-lo.
Quando se encontraram em meio aos canteiros floridos
do jardim, George procurou tomar o tom profissional que usava com os seus
clientes:
- Minha mãe lhe falou sobre as minhas intenções a
seu respeito, não é verdade?
A moça, para esconder o seu constrangimento,
abaixou-se para cheirar uma linda rosa em botão, rubra como sangue.
- Falou, doutor...
- Maria, chame-me George, já lhe pedi tantas
vezes...
- Falou... George.
- Sei que você lhe pediu algum tempo para pensar,
para refletir sobre a proposta. Acho isto justo e de certo modo até aprecio,
pois vem provar o quanto você é sensata, ponderada e criteriosa.
Maria "Flor de Amor" teve vontade de lhe
contar toda a verdade. Mas a ideia de lhe causar uma grande dor, de pagar, num
certo sentido, com o mal, todo o bem que ele por ela havia feito, conteve-a.
Murmurou sem lhe olhar nos olhos:
- É uma decisão muito... Mas muito séria a tomar...
- Tem razão, sim... É preciso refletir bastante,
antes de dar um passo que, afinal, é o mais importante da vida de cada um.
- Doutor... Quero dizer, George... Tem certeza de
que já refletiu assim, ponderadamente? Você nada sabe sobre mim e eu posso
muito bem não ser digna da sua preferência, da sua bondade...
O médico lhe tomou a mão e manteve-a entre as suas,
quentes e fortes, apertando-a ternamente.
- Maria - disse, um pouco encabulado - acho que já
pensei, já refleti o suficiente e estou bem certo de que... Eu a amei desde o
primeiro instante em que a vi, sabe? Não sei ainda se conseguirei despertar
amor em você, mas se, por uma imensurável felicidade o conseguisse, no
futuro... Eu lhe juro, querida, que você nunca se arrependeria. Só agora sei o
que pode fazer um homem pela mulher que ama!
- George, não fale assim, peço-lhe...
- Não me posso calar, Maria! Sinto que, no dia em
que você se tornar minha esposa, eu poderei realizar grandes coisas! Tenho
dentro de mim uma força secreta, um desejo de intensa atividade que só espera o
estímulo do seu amor...
As palavras amorosas do jovem médico caíam como
pedras de gelo no coração destroçado de Maria. Ela estimava George, sentia por
ele fraternal afeto, mas não pensava, não concebia a ideia de vir a tornar-se
sua mulher, de poder dividir sua vida com ele.
O rosto querido de Luís Paulo, sua imagem
inesquecível estavam sempre fixos no pensamento dela.
Mesmo depois do que havia acontecido, ela sentia que
aquele, sim, que ele era a sua alma gêmea, que jamais poderia esquecê-lo e que,
tendo-o perdido como o perdera para outra mulher, jamais poderia conseguir amar
nenhum outro homem!
George, vendo-a pensativa, acreditando que ela
estivesse refletindo sobre seu pedido, e iludindo-se, com o natural otimismo
dos apaixonados, acreditando que poderia ser aceito, sentiu um agradável calor
no peito. Com mão trêmula, quase com veneração, fez uma carícia nos louros
cabelos de "Flor de Amor".
- Maria... - sussurrou - minha querida... Sinto que
a vida, para mim, de agora em diante não pode ser feliz nem frutífera, sem ter
você ao meu lado...
Amedrontada, a jovem deu um passo atrás.
- George, por favor, não diga uma coisa dessas!
Existem milhões de mulheres no mundo, todas melhores do que eu, que o fariam
feliz e que se sentiriam ditosas, casando-se com você! Tenho certeza disso!
- Mas nenhuma é como você!
- Oh! Você não sabe o que diz! Está alucinado!
- Minha querida... Não vou insistir, não quero
forçar sua decisão, mas dentro de pouco me ausentarei de casa e ficarei longe
por algum tempo. Diga-me uma palavra, uma só palavra, antes que eu parta...
Alguma coisa que me ajude a viver, a enfrentar serena e esperançosamente as
dificuldades da minha profissão. Uma palavra apenas, peço-lhe!
Maria "Flor de Amor" baixou a cabeça, sem
coragem de responder, como se temesse dar-lhe uma grande desilusão, depois do
que ele havia feito em seu benefício.
George, por sua vez, embora um pouco desiludido,
atribuiu o silêncio em que ela se mantivera à natural timidez de mocinha que se
vê diante de tão sério problema e não ousou insistir na pergunta. Continuando a
segurar-lhe a mão e beijando-a quase com devoção, disse:
- Não quero forçar você a tomar uma decisão. Saberei
esperar...
A moça, um pouco mais calma, ergueu os olhos para
ele e fitou-o com gratidão.
- Obrigada, George... Você é mesmo muito bom.
- Querida Maria "Flor de Amor"!... Como
bendigo o dia em que você entrou nesta casa e na minha vida! Cuide de minha
mãe, por favor. Ela está meio doente do coração... E eu tenho muito medo de
que...
O jovem médico interrompeu a fala, bastante
emocionado, e passou a mão pela fronte, como quem deseja afastar da mente um
pensamento desagradável.
Maria "Flor de Amor" lhe estendeu a
mãozinha que ele havia soltado.
- Vá descansado, George - disse simplesmente. -
Tenha confiança em mim. Agora, vá comer qualquer coisa...
A senhora Dorotéia estava pondo a mesa com todo o
cuidado. E enquanto George fazia uma leve refeição, fez-lhe as mais carinhosas
recomendações, demonstrando o carinho que lhe devotava. Em contrapartida, ela retrucou:
- Trate de você, não se canse muito! - disse,
preocupada, - Não vá perder noites de sono estudando nesses seus livrões. Se
não dormir direito, fica fraco e emagrece...
- Não se preocupe, mamãe. Sei me cuidar.
George jamais passara longe da mãe tempo mais
dilatado que uns dois ou três dias e ela parecia ter a impressão de estar a
vê-lo partir para uma longa viagem.
Como toda mãe, continuava a ver o filho pequenino,
não se dava conta de que o tempo havia passado e fazia aquelas recomendações
todas com receio de que ele não soubesse se arranjar sozinho.
- Tome cuidado com a saúde e vista sempre o seu
suéter de lã.
- Mas, mamãe, com o tempo quente que tem feito?
- Não quer dizer nada. À noite sempre esfria e se
apanha um resfriado e com toda a sua medicina não será capaz de curá-lo!
- Está bem, mamãe...
- Assim que você chegar, tire as camisas da maleta e
coloque-as num gavetão, senão ficam todas amarrotadas.
- Sim, mamãe.
O doutor George, obediente como um menino, olhando
para a velha mãe com olhos cheios de ternura, ouviu todos os conselhos e
recomendações sem se impacientar, embora soubesse que, absorvido como iria
ficar pelo seu trabalho, acabaria esquecendo tudo aquilo, deixaria as camisas
na mala mesmo e jamais vestiria o suéter de lã.
Afinal chegou o instante da partida e a senhora
Dorotéia não pôde deixar de derramar algumas lágrimas.
Abraçou o filho, ficou demoradamente com os braços
em torno dele.
- Volte depressa, George - murmurou. - Não fique
longe muito tempo! Escreva sempre, dando notícias e, sempre que puder, dê uma
escapada e venha até aqui. Vou ficar tão triste, separada de meu filho!...
- Mamãe, mas terá Maria "Flor de Amor",
para lhe fazer companhia! Não deve chorar! Fale com ela, Maria, diga-lhe que se
trata apenas de uma breve separação e necessária para que eu possa progredir na
minha profissão...
A jovem, com sua palavra persuasiva e seu modo suave
e gentil, que tanto havia conquistado a senhora Dorotéia, conseguiu convencê-la
a deixar o filho partir, e fê-la sentar-se numa poltrona.
Depois, embora George protestasse, quis a todo custo
carregar a maleta de aparelhos e remédios até a charrete, enquanto ele ajeitava
na parte traseira do veículo o resto da bagagem.
Ainda uma vez, antes de entrar na charrete, o médico
beijou demoradamente a mão da moça.
Quando Maria "Flor de Amor" voltou para
dentro encontrou a senhora Dorotéia a olhar a rua por onde a charrete do filho
desaparecera.
Depois, fora sentar-se ao toucador, enquanto as
lágrimas lhe escorriam pela face.
Maria “Flor de Amor”, procurando não fazer barulho,
aproximou-se da outra... Observou, com apreensão, que a velha e bondosa
senhora, instintivamente, comprimia o peito com as duas mãos, na parte próxima
ao coração.
Que emoções e reviravoltas ainda veremos nessa história? Vamos aguardar... Tomara que as coisas comecem a se resolver logo.
ResponderExcluirPaulo, será que Maria "Flor de Amor" vai sofrer mais tristezas nessa casa? E George, o que irá descobrir? Estou curiosa! Bjs.
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