O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’unAnge
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo X
BONITA,
PORÉM, HIPÓCRITA
Depois de
jantar, o conde Fernando tomou amorosamente Denise pelo braço e a levou até uma
linda saleta. E, logo após o criado ter-lhes servido o café, Fernando disse:
- Você me
contou que o bondoso preto Benedito foi um pai para você, mas satisfaça-me uma curiosidade:
Como ele conseguiu ganhar a vida? Um escravo fugitivo dificilmente encontra
quem queira protegê-lo, tem que viver ocultando-se continuamente dos caçadores
de escravos fugitivos, que os tratam como se fossem feras e ainda são
recompensados se, em vez de vivos, os entregam mortos aos seus donos.
- Papai, pelo
que Benedito me contou, quando ele fugiu da clínica levando-me nos braços,
sofreu um verdadeiro calvário. Foi perseguido, escapando milagrosamente dos
seus algozes. Conseguiu chegar até o México, onde encontrou pessoas de bom
coração que o socorreram. Um farmacêutico canadense, compadecido dele e da
criança, que era eu, deu-nos uma pequena casa e um lugar para Benedito, na sua
farmácia, que assim ganhava honestamente para o nosso sustento e para o custeio
da instrução que me deu posteriormente. Realmente, vivíamos muito pobremente.
Ele nunca pôde comprar-me os brinquedos com que as meninas ricas me davam
inveja, nem os lindos vestidos e jóias que elas usavam.
- Coitada! -
disse o conde, compadecido. - Dói-me o coração só de pensar no que você sofreu... Mas, diga-me, porque o seu protetor não continuou a chamá-la
Maria "Flor de Amor"? Esse seu, nome é tão
suave, tão encantador...
- Benedito,
quando jovem, tivera uma filha chamada Denise. Uma linda criança, fruto de seu
casamento com Niobe, uma excelente criatura que foi o único amor de sua vida.
Nesse tempo, Benedito era escravo de um fazendeiro sem escrúpulos, que vendeu
mulher e filha a um rico proprietário de terras, enquanto que Benedito era
vendido ao doutor Démon. Pouco depois, o infeliz veio a saber que Niobe e a
filhinha tinham perecido nas águas do rio Mississipi. Por isso, o bom Benedito
quis que eu usasse o nome de sua filha - Denise - em vez do meu verdadeiro
nome, para que tivesse a ilusão de que aquela criatura tão querida por ele, ainda
continuava viva. E, realmente, ele teve para mim o amor e a abnegação de um
verdadeiro pai. E é por isso que eu quero continuar usando o nome de Denise,
como um tributo de carinho à memória do homem que só me fez o bem.
- Acho que você
está certa, minha querida - disse o conde Fernando, reprimindo a sua
contrariedade por aquele desejo da jovem. Após consultar o seu relógio de
bolso, prosseguiu:
- Como o tempo
passa depressa! Já são onze horas e você deve estar terrivelmente cansada.
Dê-me um beijo, filhinha, e depois vá repousar, daqui a pouco eu farei o mesmo.
- Boa noite,
papai! - disse imediatamente Denise, levantando-se e beijando o conde, com
pressa excessiva. - Ah, ia-me esquecendo: eu disse ao cocheiro que preparasse a
carruagem amanhã de manhã, porque preciso fazer umas compras. Não fica zangado,
não é?
- Que ideia!
Durma tranquila, eu mesmo avisarei a senhorita Flora para que lhe faça
companhia. Denise não conseguiu dissimular totalmente o seu desapontamento, ao
ouvir tais palavras.
- Papai por que
não vamos nós dois sozinhos? Não que essa moça me seja antipática, mas... Gosto
tanto de conversar com você, não queria que uma estranha ouvisse o que
dissermos.
- Não tenha
receio, querida, Flora é ótima criatura e não incomoda ninguém. Pelo contrário,
a companhia dela será muito agradável, você verá! Parece-me já lhe ter dito que
faço votos para que as duas se tornem sinceras amigas, não? Pode ir com ela a
toda parte, porque Flora tem grande experiência e poderá ensinar-lhe muitas
coisas úteis. E agora, boa noite! É melhor que você vá descansar - concluiu
Fernando, acompanhando a mocinha até a porta dos aposentos dela.
Logo que entrou
no quarto, Denise fechou a porta, dando duas voltas na chave e, abrindo o
armário, dele tirou uma maleta, que carregava consigo quando chegara.
- Puxa, como é
enjoado morar neste palácio! - murmurava, enquanto isto. - Esta vida calma e
monótona, sempre igual, não foi feita para mim. Se não fosse a esperança de um
dia ser a dona absoluta de tudo isto, iria embora, sem pensar duas vezes!
Lançou uma olhadela a um antigo e valioso
relógio que estava sobre uma mesinha e continuou:
- Já são onze e meia! Se não me apresso,
chegarei tarde!
Tirou
rapidamente o vestido que havia posto para o jantar com o conde e envergou um
longo, que tirou da mala.
"Afonso
deve estar impaciente", pensava. "Oh, não vejo a hora de dançar com
ele, que é um verdadeiro mestre de baile! Que desgosto ter deixado toda aquela
gente alegre e despreocupada, para representar o papel de grande dama..."
Dirigiu um
olhar satisfeito ao espelho, para admirar o atrevido decote do vestido, que
punha em realce as suas formas provocantes.
Finalmente,
abriu devagarinho a porta do aposento e, certificando-se de que não havia
ninguém por perto, desceu silenciosamente a larga escadaria e atravessou
correndo o grande saguão.
Quando sentiu
no rosto a carícia agradável da brisa noturna, suspirou aliviada.
"É pena ter de fazer a pé o trajeto", refletiu. "Se eu pedisse um carro para esta noite ao
enfadonho indivíduo que devo chamar de pai, sei lá quantas perguntas me
faria!"
Sempre
monologando, atravessou todo o parque e, abrindo o portão, saiu para a rua.
Com um suspiro
de resignação, aconchegou melhor ao corpo o casaco de pele que havia atirado
sobre o vestido de noite, e a passos curtos e apressados dirigiu-se para as
luzes que brilhavam ao longe.
Era pouco mais
de meia-noite, quando Denise se deteve diante de um edifício, onde estavam
estacionadas muitas carruagens luxuosas.
Na fachada, via-se um letreiro:
"BalTabarin".
O "BalTabarin"
era a meca de toda ajuventude
desregrada de Nova Orleans, que ali marcava encontro para poder embriagar-se
livremente, ao som de barulhentas músicas.
Naturalmente,
as moças direitas nem pensavam em frequentá-lo, mas Denise, que, como filha da
marquesa Renata Duplessis se ufanava de não pertencer a tal categoria, subiu
rapidamente os poucos degraus que conduziam à entrada e deixando o casaco de
peles no guarda-roupa, dirigiu-se para a sala de danças, pavoneando-se no
vestido demasiadamente afeito, que agora se coadunava com o ambiente.
Havia dado
poucos passos quando um rapaz excentricamente vestido afastou-se do bar com um
grito de júbilo e, tomando-a nos braços, beijou-a demoradamente, na frente de
todos, sem que, aliás, ninguém se espantasse.
- Afonso, meu amor. - disse Denise, logo que
recobrou o fôlego. - Como vai? Perdoe-me se não apareci nos últimos dias, mas
estive ocupadíssima!
- Fazendo o
quê? Quero saber! - disse o rapaz. - E cuidado para não mentir, ouviu? Iria
arrepender-se!
- Claro, querido!
- riu Denise, fazendo um gesto brejeiro, e convidando Afonso a segui-la até um
camarote próximo a eles, - Mas olhe, é um segredo que eu jurei não contar a
ninguém!
- Nem a mim,
que sou o único homem de sua vida, há nada menos de três meses? - protestou
Afonso, fazendo cara amuada. - Eu pensaria que você já não me ama!
- Está bem -
disse ela, depois de alguns instantes de hesitação. - Eu lhe direi, mas jure
que não contará a ninguém! A ninguém!
O rapaz colocou
a mão sobre o coração com gesto melodramático.
- Denise, como
pode duvidar de mim? Eu por acaso não tenho sabido guardar os seus segredos,
sempre que se torna necessário? Já devia conhecer-me!
- É justamente
por que o conheço. Em todo caso, primeiro vamos sentar-nos e peça algo que se
beba.
- Você paga, querida?
- Pago, sim! Sei muito bem que você está
sempre "duro"!
- Eh, garçom! -
apressou-se a gritar Afonso. - Uma garrafa de champanha, o melhor, por favor!
Em seguida, fazendo a pequena sentar-se a
seu lado, ajuntou:
- E agora, luz dos meus olhos, conte-me
tudo.
- Como você já
sabe - começou Denise - eu não sou filha de Berta, a dona do pensionato, e sim
de uma senhora rica e aristocrática, que para impedir que no ambiente dela
soubessem que ela não era nada honesta, entregou-me àquela mulher, pagando
muito bem para que me criasse. Ora, quatro dias atrás, quando eu menos
esperava, quem apareceu em minha casa? Uma senhora elegantíssima, que desceu de
uma esplêndida carruagem que, depois de dar-me a entender que era minha mãe,
comunicou-me que meu pai, um fidalgo riquíssimo, queria absolutamente que eu
fosse para junto dele.
- E você,
naturalmente, tratou de ir, não é assim? - interrompeu Afonso, servindo o
champanha.
- Naturalmente!
Pensa que sou estúpida? Um pai riquíssimo, evidentemente não é coisa que se
jogue fora! E agora, para seu governo, eu estou morando num maravilhoso
palácio, cercado de um jardim imenso, e dezenas de criados trabalham para mim.
Todos me respeitam e me chamam "condessinha"! Que tal, Afonso?
- Que sorte
tremenda você teve! E agora... Que ficou rica, não precisa mais de mim, não é?
- Que ideia!
Juro que no meio de todo aquele luxo e daquelas etiquetas todas, eu só pensei
em você! A vida dos fidalgos é boa, mas enjoada de morrer!
O rapaz abraçou a jovem e a beijou,
apaixonadamente.
- É verdade
mesmo que ainda me ama, Denise? - perguntou depois.
Ela ia
responder, quando o encarregado do local, um homem alto e gordo, trajado a rigor,
entrou no camarote e disse, fazendo sinal com o polegar, por trás dela:
- Eh, Afonso,
tome cuidado! Em vez de ficar aqui beijocando a pequena, cuide-se, que a
polícia acaba de chegar! Eu daria o fora, se fosse você.
O interpelado
não deixou que o outro repetisse. Despedindo-se apressadamente da moça,
desapareceu rápido, por uma pequena porta que se abria atrás do palanque da
orquestra.
Também Denise,
cuja consciência não estava nada tranquila, apesar de irritada com a
interrupção que lhe estragava a noite, achou oportuno evitar as perguntas dos
policiais e, colocando algumas cédulas sobre a mesa, saiu pelo mesmo caminho
que o rapaz. Tornou a fazer rapidamente o percurso até o palácio do conde
Fernando e, com precaução, abriu o postigo que dava para o jardim. Olhou
prudentemente em volta e, não avistando ninguém, dirigiu-se decididamente pela
alameda onde a obscuridade era ainda mais densa, por causa das altas árvores
que a sombreavam.
Não se ouvia
qualquer rumor. Convencida de que ninguém a vira, Denise ia passando perto do
pavilhão onde Fernando a levara com Flora, para que visitasse aquela que
julgava ser sua mãe, quando,
repentinamente, um vulto branco se postou diante dela, surgindo de trás de uma
das moitas de hortênsias. A pequena levou a mão à boca, sufocando um grito!
À luz pálida de um raio de
luar que se filtrava entre os galhos das árvores, havia reconhecido o rosto de
Marta, contraído numa dura expressão de cólera!
- É a louca! A louca!... - balbuciou Denise,
aterrorizada.
- Eu a apanhei!
Impostora!... - gritou Marta, barrando-lhe a passagem. - Agora Fernando vai
saber quem é a criatura que ele tem em sua casa, pensando que é sua filha! Você
não o enganará mais!...
Denise, porém,
recobrando-se um pouco, e percebendo a gravidade do perigo que a ameaçava,
instintivamente se lançou para a frente e, impelida pela raiva de ter sido
descoberta, crispou as mãos no pescoço de Marta, travando com ela uma luta
furiosa. Infelizmente, as forças da doente eram minguadas demais para
competirem com as frescas energias da jovem e, um instante depois, Marta caía,
desfalecida, na relva úmida de orvalho. Enquanto isto, Denise, vendo o caminho
livre, havia alcançado e aberto a porta do saguão, tornando a fechá-la logo em
seguida, silenciosamente.
No dia seguinte, Fernando
estava olhando, distraído, os jornais da manhã, sentado em seu gabinete, quando
Flora irrompeu no aposento, pálida, a tremer, sem sequer bater, como costumava
fazer.
- Com licença, conde -
exclamou. - Aconteceu algo gravíssimo...
- Que foi? Fale! - exortou
Fernando, vendo-a tão agitada. - Espero que não seja tão grave assim...
- Mas é, infelizmente,
conde! Esta noite dona Marta fugiu do pavilhão, aproveitando-se de um instante
em que a enfermeira de plantão havia cochilado, e nós a encontramos esta
manhã... Caída no jardim!...
Fernando se pôs de pé, de um salto,
impressionadíssimo.
- Como está ela, agora? Quero vê-la!
- Há mais uma coisa! -
disse Flora. - Houve alguém... Que tentou estrangulá-la!
- Que me diz?! - replicou o
conde, parecendo não acreditar no que ouvia. - Marta não conhece ninguém aqui.
Quem pode ter feito isto com ela? Tem certeza de que foi tentativa de
estrangulamento?
- Absoluta,
infelizmente! - anuiu Flora. - Fui eu mesma que a encontrei, quando dava o meu
passeio matinal! Ela estava estendida, na relva e apertava no punho fechado um pedaço de pano, que
sem dúvida deve ter arrancado da roupa de quem a agrediu, durante a luta...
O conde, muito pálido, estendeu a mão.
- Senhorita
Flora, quero ver esse pedaço de pano! Tenho de descobrir, custe o que custar,
quem tentou matar Marta! Interrogarei todos os empregados, um a um, e se foi
algum deles, receberá o castigo que merece!
- Conde
Fernando, eu não creio que tenha sido nenhum dos domésticos...
- Como pode dizer isto? Tem alguma
suspeita?
Flora ficou
incerta por um pouco, e com expressão estranha no rosto, disse, em seguida:
- Não...
Prefiro não falar... Não acusar sem provas.
Essa falsa condessinha é igual a mãe! E acho que vai fazer alguma maldade com Marta e com Flora também! E Fernando, vai acreditar nela, é muito fácil de ser enganado. Muito bom, Paulo! Bjs.
ResponderExcluirFilho de peixe peixinho é. Denise é tão bandida quanto sua mãe. Agora foi capaz de bater na pobre Marta. Tomara que logo descubram quem é essa megera. Paulo, estou gostando muito.
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