O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’unAnge
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Afonso
sussurrou entre dentes:
-
Cale-se! Não descubra o nosso jogo!
Estas
palavras e o olhar do rapaz bastaram para Denise reagir e calar, embora não
imaginasse por que motivo Afonso estava ali, percebia, porém, que ele, se agira
daquele modo, devia haver algum oculto objetivo.
O
conde Fernando logo se aproximou de Denise, que já estava de pé, e afagou o
rosto da jovem, sorrindo de alegria, ao vê-la já recuperada.
Foi
o momento que o matreiro Afonso aproveitou para retirar o furador cuja ponta
ferira ao cavalo.
-
Querida filhinha, sente-se melhor, agora?
-
Sim, papai - respondeu Denise, virando-se para Afonso, com expressão
significativa. - Leve-me para casa, por favor, papai.
-
Agora mesmo, minha filha, agora mesmo!
Momentos
depois, voltando-se para Afonso, que havia esperado de pé, acrescentou:
-
Quer entrar conosco no palacete? Desejo demonstrar-lhe, de maneira tangível, o
meu reconhecimento:
Era
o que Afonso desejava, mas, para não despertar suspeitas, esquivou-se:
-
Não, obrigado, senhor. Eu sou pobre, é verdade, mas não aceito recompensas por
aquilo que faço espontaneamente. Teria a impressão de não merecê-las!
-
Permita ao menos que eu lhe ofereça um terno, em troca do seu, que está
completamente estragado! Isto eu lhe peço como um favor! - insistiu o conde,
favoravelmente impressionado pela atitude desinteressada do rapaz. - A
substituição de um terno não pode ofender a sua dignidade, não acha? Tanto mais
que não poderia andar por aí assim...
-
Bem, se o senhor insiste... - cedeu logo o vigarista.
-
De fato, esta é a única roupa decente que me resta, e ficou em mau estado...
-
Está vendo? Vamos, suba o senhor também para a carruagem! Ficaremos um pouco
apertados, mas o percurso é pequeno.
Logo
que chegaram ao palácio, Fernando, tendo mandado acomodar seu salvador numa das
saletas, levou Denise para o apartamento desta e chamou uma doméstica, para que
a ajudasse a despir-se e a fizesse tomar um calmante, a fim de restaurar-lhe os
nervos abalados.
-
Oh, papai... - choramingava Denise, como se em vez de ter levado um pequeno
susto, estivesse para morrer.
-
Foi algo terrível... Terrível mesmo!...
-
Tem razão, minha filha - consolou Fernando - e se não fosse esse corajoso
rapaz, a coisa poderia acabar mal. Agora não pense mais nisto, vamos...
-
Não posso deixar de pensar! - respondeu Denise. - Foi impressionante demais!...
Quanto ao rapaz, seja agradecido a ele o resto de sua vida, papai!Ele deu mesmo
uma grande prova de coragem, não é? E merece uma recompensa!
-
Foi o meu primeiro pensamento, filhinha. Mas ele não quer aceitar nada, apesar
de ter sido sincero, confessando que não é rico...
-
Garanto que se você lhe oferecer um cheque, de uma boa quantia, ele o meterá no
bolso!
-
Não creio. Em todo caso, tentarei novamente - concluiu o conde, dirigindo-se
para a porta. - Agora procure repousar, faça este favor a seu pai.
Esta,
porém, não era a intenção da jovem, que estava curiosa para ver como agiria
Afonso, e mesmo para ter uma idéia mais exata de quais eram as suas intenções.
-
Papai - pediu com voz suave, - deixe-me descer também, para agradecer ao rapaz.
Já estou ótima, pode crer!
-
Não... Você sofreu um forte abalo, minha filha! Deve experimentar dormir um
pouco!
-
Não conseguiria... Quero que você fique junto de mim, sabe? Depois que o nosso
salvador for embora, então, eu irei para a cama e você segurará minha mão, para
ver se eu durmo. Por favor, papai... Não conseguiria dormir de outro modo...
Enternecido
com a hipocrisia dela, o conde retornou sobre seus passos e, depondo-lhe um
beijo na fronte, ofereceu-lhe o braço, dizendo:
-
Você é adorável, querida. Não se pode recusar-lhe nada... Vamos descer para a
saleta, então, se tanto o deseja...
Um
minuto depois, o conde e aquela que o fidalgo julgava ser sua filha apertavam
novamente a mão de Afonso que, enquanto esperava, havia admirado, com inveja e
cupidez, os esplendores daquela residência verdadeiramente principesca.
-
Meu amigo - exclamou Fernando - espero que me perdoe, se na confusão que
sobreveio ao acidente, esqueci-me de fazer as apresentações: sou o conde
Fernando de Chanteloup e esta é Maria... Ou seja, Denise, a minha filha.
-
Eu me chamo Afonso Houdin - disse por sua vez o vigarista, olhando
disfarçadamente para Denise. E imaginando que sorte ela tivera em estar
ocupando um lugar daqueles.
-
Foi um prazer ter podido fazer alguma coisa pelo senhor e pela senhorita sua
filha.
-
Permita então que eu lhe retribua o favor - disse o conde, tirando do bolso do
paletó o talão de cheques.
Mas
Afonso se opôs imediatamente, com falso calor:
-
Não, senhor conde! Já lhe disse que não aceito recompensas, quando acho que não
as mereço.
-
Diga-me então o que posso fazer pelo senhor! Eu me aborreceria se ficasse com
esta dívida! O senhor não desejará alguma coisa que possa aceitar sem ferir sua
suscetibilidade?
Por
um instante, o ladrão fingiu pensar, depois respondeu, com ar embaraçado:
-
Uma coisa eu desejaria... Mas não quero pedir demais...
-
Fale, não tenha receio! - apressou-se a encorajá-lo Fernando, passando a mão em
torno dos ombros de Denise, que assistia interessadíssima à cena. - Só o
pensamento de que o senhor talvez tenha salvo da morte o meu maior tesouro,
faz-me parecer insignificante até mesmo um pedido exagerado.
-
Queria dizer-lhe o seguinte, senhor... Eu saí de minha cidade para procurar
trabalho em outro lugar, mas, desgraçadamente, os tempos estão ainda difíceis e
a crise de desemprego continua sendo um problema atual. Se o senhor fizesse a
gentileza de conseguir-me uma colocação, qualquer que fosse, eu lhe ficaria
grato durante toda a vida...
-
Se é somente isto, considere-se desde já empregado!- Condescendeu logo o conde
Fernando. - E diga-me: que sabe fazer?
-
Entendo bastante de cavalos, um lugar de cavalariço, por exemplo, seria o
ideal, para mim.
-
Sem dúvida, Afonso! Por coincidência, há alguns dias que um dos meus
cavalariços foi embora e o lugar está vago! Pode ocupá-lo, hoje mesmo! Terá um
ótimo salário, comida e morada! Gosta da ideia?
-
Se gosto! Nunca poderia esperar tamanha sorte! O senhor não terá queixas de
mim! - exclamou Afonso, fingindo entusiasmo, pois para ele o trabalho sempre
havia sido um dos piores suplícios que podem ser infligidos a um ser humano.
Denise,
porém, não pensava como o conde Fernando, temendo que Afonso estragasse os seus
planos.
Enfim,
não podia dizer nada que fizesse ver a Afonso que ela tencionava dificultar-lhe
o emprego no palácio.
Sentia,
fixos nela, os olhos do rapaz e estremecia só de pensar no que ele lhe faria,
se pudesse imaginar o que ela pretendia fazer.
Todavia,
logo que Afonso saiu acompanhado de um criado que lhe devia mostrar o quarto
onde se alojaria, e a enorme coudelaria do conde, a mocinha disse a Fernando:
-
O senhor também está um pouco pálido, papai... Que tal se fôssemos repousar um
pouco, talvez depois de tomarmos uma boa xícara de chá?
-
Seria bom, Denise, mas não queria que eu ficasse a seu lado, e que segurasse a
sua mão, até você dormir?
-
Ah, isto foi um capricho de criança assustada e eu me censuraria se deixasse
que o senhor, papai, se sacrificasse por mim.
-
Mas sabe que para mim é um prazer estar ao seu lado, minha filha! Dormirei mais
tarde!
-
Não, será agora! - retorquiu Denise, impelindo, com delicada firmeza, o fidalgo
para a porta. - Desta vez, é o senhor que vai fazer uma vontade à sua filha!
Incapaz
de resistir, inteiramente subjugado pela habilidade consumada da astuciosa
pequena, o conde Fernando resolveu, contra a própria vontade, obedecer.
Mal
havia fechado a porta atrás de si, Denise, saindo por outra porta, desceu ao
jardim, imaginando que Afonso a esperasse ali, onde havia muitas pérgulas
afastadas de olhos indiscretos.
De
fato, havia percorrido apenas uns cem metros pela alameda quando Afonso, vindo
de um caminho lateral que, com toda a probabilidade, devia dar nas cocheiras,
foi ao eu encontro, sorrindo.
-
Minha bela Denise, estou realmente maravilhado! - exclamou. - Não pensei que
você fosse tão esperta na arte de enganar os outros! O tolo do conde está mesmo
convencido de que você é filha dele! Temos de aproveitar-nos depressa desta
formidável oportunidade!
Mas
contrariamente ao que Afonso esperava, ela se voltou contra ele, dizendo em tom
nada benévolo, nem afetuoso:
-
Vá embora daqui! - sibilou. - Enlouqueceu, por acaso? O que aconteceria, se
alguém nos visse conversando?
-
Não é preciso ter medo!
-
Mas enfim, posso saber o que veio fazer aqui?
O
rapaz desatou a rir.
-
Simples, meu bem! Entrei neste maravilhoso palácio para ficar perto de você!
-
E como conseguiu saber que eu estava morando aqui?
-
Por puro acaso!
Ela
fez uma careta irônica, de pessoa nada convencida.
-
Quer dar-me a entender que foi também por acaso que ficou no caminho da nossa
carruagem, onde, também por acaso, os cavalos empinaram?
A
estas palavras o vigarista riu novamente e, em vez de responder à pergunta da
jovem, abraçou-a, beijando-a na boca.
Denise
pareceu gostar da homenagem, mas, repentinamente, separou-se dele, sussurrando:
-
Cuidado, vem gente!... - e continuou, no instante em que Flora saía do caminho
por onde havia chegado Afonso:
-
Mais uma vez eu lhe agradeço pela sua coragem!... Oh, bom dia, senhorita Flora!
Este é Afonso Houdin, o moço que salvou minha vida e a de papai, não faz ainda
nem uma hora!
-
Está falando sério? - exclamou Flora, sinceramente admirada, porque ainda não
sabia do acidente. - E como foi?
-
Posso contar-lhe! Venha comigo ao meu apartamento...
E
tomando Flora pelo braço, Denise se dirigiu para a entrada do palácio, falando,
animada.
Afonso,
que ficara por um momento desconcertado com a súbita retirada das duas moças,
não pôde deixar de apreciar a astúcia e a presteza de espírito de Denise, que
tinha sabido sair com desenvoltura de uma situação bastante embaraçosa. "Não
é nada tola, a pequena!", comentou, falando consigo. "Pelo contrário,
é tremendamente viva e astuta... Contando com ela, eu, chegarei a ser até
milionário!"
Paulo, como Afonso é esperto! E o pobre Fernando, como sempre acreditou nele também. Fernando nasceu para ser ludibriado! Que história cheia de lances emocionantes! Legal!
ResponderExcluirAté agora só os maus estão se dando bem. Vamos ver quando isso vai mudar. Estou esperando a reviravolta. Muito bom, Paulo!
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