O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’unAnge
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Fascículo
III
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Um grito de dor e
assombro seguiu as palavras do médico infernal. Fernando, com o rosto crispado
num esgar de indizível sofrimento, fixava com os olhos esbugalhados a mulher
que havia aparecido no vão da porta!
O médico dos loucos,
o perverso cúmplice da marquesa Renata, havia preparado de propósito àquele
ingresso, para causar o máximo efeito. Sua índole perversa divertia-se ferindo
ainda mais o coração do conde Fernando.
Adiantando-se
vagarosamente, Marta, agora uma pobre demente, vestindo um roupão branco que
lhe dava aspecto espectral, entrou no gabinete, diante do olhar perplexo do seu
Fernando.
Seu corpo, que foi
estupendo quando ela estava na flor da juventude, haviaemagrecido
assustadoramente, devido aos jejuns forçados que a satânica maldade do doutor
Démon lhe havia imposto. O rosto, que foi encantador agora estava descarnado e
de uma palidez cadavérica.
Só se conservavam
ainda a antiga vitalidade, como testemunhas de uma apagada beleza, nos grandes
olhos resplandecentes, azuis como o céu, nos quais, porém, não se lia nenhuma
expressão.
Fernando, de pé em
frente a ela, respirando com dificuldade, estava incapaz de prenunciar uma
palavra que fosse. Naquele momento, se tivesse uma arma qualquer, não hesitaria
em usá-la contra si mesmo, a fim de acabar com o tremendo remorso que o
atormentava, convencido de ser culpado da destruição daquela criatura sem
salvação.
O verdadeiro
responsável por tudo, com as mãos enfiadas nos bolsos do avental, observava a
cena, satisfeito, sem que seu coração de pedra fosse tocado pela compaixão.
Mas, fingindo-se
compadecido, aproximou-se do conde e lhe sussurrou ao ouvido:
- Eu o avisei da
terrível impressão que o senhor ia sofrer. Seja forte, agora! Diga-lhe alguma
coisa, dirija-lhe ao menos uma palavra afetuosa. Ela, apesar de sua demência,
comove-se com grande facilidade e talvez não tarde em ter uma de suas crises.
O fidalgo limpou o
suor gélido que lhe cobria a testa. Depois, segurando, entre as suas, as mãos
descarnadas da coitada, sem que ela fizesse nenhum gesto para se retrair,
perguntou, com ternura:
- Marta, não me
reconhece? Sou eu, Fernando...
Nenhuma resposta. A
louca o olhou com indiferença, sem demonstrar ter entendido. Enquanto isto, por
uma porta entreaberta, a marquesa Renata assistia a tudo, regozijando-se com a
tortura de Fernando. Como era delicioso, para ela, o acre sabor davingança!
Démon soube trabalhar bem, não restava a menor dúvida!
Ignorando ser o
objeto de tão maligna observação, Fernando insistia desesperado, incapaz de
crer em seus próprios olhos:
- Marta... Marta!
Olhe para mim! Não se lembra, então? Eu sou o seu Fernando! E eu a adoro, como
naquele tempo em que fomos felizes!
Mas em vão o conde
esperou a resposta. Seu nome, que outrora bastaria para fazer palpitar o
coração da jovem, agora não lhe produzia mais nenhum efeito.
- Meu bem, meu amor!
- exclamou ainda Fernando, abraçando a louca. - Volte a si, querida! Não me vê?
Estou muito arrependido e lhe peço perdão! Estou disposto a sacrificar a minha
própria vida para fazer a sua felicidade. Fale!... Olhe para mim! Diga que me
perdoa...
De repente, a louca
desatou numa risada histérica, soluçante, afastando o homem de si num gesto
quase de repulsa, balbuciou:
- Onde está
"Flor de Amor?" Por que não está aqui? Cuidado, a menina pode
machucar-se, com todas essas rosas... Como são bonitas! Mas... Estão sujas de
sangue!... Rasgue essa carta maldita! Tudo é mentira, tudo é perfídia!
- Basta, basta! -
suplicou Fernando. - Não suporto mais tanta dor, doutor! Por favor, eu lhe
darei tudo o que possuo, até o último níquel, mas devolva-lhe a razão! Não é
possível que tenha de ficar assim o resto da vida!
- Acalme-se, conde! -
disse Démon com voz melosa, tornando a sentar-se atrás da escrivaninha, - Já
tentei tudo, mas sem resultado. O mal é irreparável: a loucura de Marta Aubert
é daquelas que só cessam coma morte.
Esmagado sob o peso
de sua aflição e de seus remorsos, o conde Fernando parecia, também ele,
incapaz de raciocinar, à beira da loucura.
- Não é possível! Não
é possível que ela tenha de ficar para sempre nestas condições! Marta,
escute-me... Vim aqui para buscá-la. Você vai comigo, para o meu palácio, onde
não lhe faltará nada... Mas diga-me: onde está a nossa filha? Onde está o fruto
do nosso amor?
O efeito produzido
por estas últimas palavras na menteda louca foi inesperado, surpreendente ao
ponto de preocupar o próprio doutor Démon, tão seguro de já ter arruinado
completamente o cérebro de Marta. Um tremor convulsivo se apoderou dela eseus
olhos se dilataram assustadoramente fixando-se no conde.
-Fernando!...
Fernando!... - elagritou, agarrando-o pelo braço, com a força do desespero. -
Onde está a nossa filha? Onde está "Flor de Amor"?
- Doutor! – exclamou
o conde, ainda incrédulo. - Por fim, ela me reconheceu! O senhor viu? Deus
operou um milagre! Marta me reconheceu!
Démon, com os braços
cruzados no peito, a testa franzida, não respondeu. Atento como estava,
limitou-se a observar as reações que se produziam em sua paciente.
- Fernando, salvea
nossa filha! - implorou Marta, cada vez mais excitada. - Não deixe que lhe
façam mal.
- Quero apertar minha
querida filhinha nos meus braços! Ela está aqui, não ouve sua voz? Ela está
junto de nós!
Interrompeu-se.
Rápida como havia saído, sua voz se apagou na garganta, num som rouco, a mão
que apertava o braço de Fernando desprendeu-se dele, agitando-se por um
instante no ar, tal como uma pobre folha morta. Depois, Marta caiu por terra,
como fulminada. Fernando, assustadíssimo, inclinou-se para a coitada,
procurando em vão reanimá-la. Vendo que todos os seus esforços eram inúteis,
encarou o médico:
- Que significa isto,
doutor? O que tem ela?... O que quis dizer sobre a nossa filha? É verdade que
se encontra aqui?
O rosto do perverso
médico se descontraiu numa expressão de absoluta servilidade, enquanto ele
respondia calmíssimo:
- Caro conde, Marta
está completamente louca, como o senhor deve ter percebido, Como pode dar
crédito ao que ela diz? Sempre teve a ideia fixa de encontrar a filha, desde
que aconteceu o fato que a separou do senhor. Porque, eu não o nego, a menina
nasceu na minha clínica...
- A que fato alude? -
indagou Fernando, sobressaltado com tudo o que acabava de acontecer. Démon se
aproximou da escrivaninha, apertou a campainha para chamar Viviana, a hercúlea
cruel enfermeira, à qual estava confiada a vigilância de Marta. Depois, fitando
o fidalgo com seus olhinhos penetrantes, como se quisesse forçá-lo a acreditar
no que ele ia dizer; mediante asua persuasiva força hipnótica, respondeu:
- Vários anos atrás,
esta paciente não havia, piorado tanto como o senhor a vê agora. Estavacom o cérebro, completamente obtuso,
sim, mas não sofria de ataques e, durante o dia, podia andar livremente pela
clínica. Foi assim que ela conheceu umoutro alienado meu, aparentemente muito
sossegado, que a instigou a fugir com a menina. A tentativa de fuga, porém, foi
descoberta eo pessoal de serviço àquela hora não conseguiu impedir que o velho
louco se afastasse, carregando com ele a criança. Marta, que estava
recuperando-se, piorou rapidamente, e a partir de então, coitada, ficou
obcecada pela lembrança da filha, que julga estar em todos os cantos.
Démon se interrompeu,
a fim de constatar se a sua narração estava perfeitamente plausível. Com um
olhar distante, o conde perguntou:
- E as frases de há
pouco? O apelo que ela fez?
- Se tivesse a
experiência que eu tenho disto, conde, não se espantaria. São os delírios
próprios de uma demente. Quando voltar a si do desmaio, é bem provável que
não se recorde, do que falouantes!
- E o senhor não teve
mais notícias do homem que levou a menina?
- Nenhuma,
infelizmente. Desapareceu como se a terra o tivesse tragado, muito embora
tivéssemos dado uma boa batida pela região, procurando por ele. Todas as minhas
investigações foram infrutíferas.
Fernando, com gesto
nervoso, passou a mão pelos olhos, como para expulsar as horrendas visões que o
atormentavam. A filha do seu amor e de seu sangue fora raptada por um louco!
Era medonho!
- Doutor Démon, -
disse ainda - que pode ter sido feito da minha... Da nossa filha?
- Aquele homem não
era perigoso, apesar de louco, provavelmente a criou, cercando-a de todos os
cuidados, e agora ela deve ser uma graciosa jovem, ou quase uma mulher, até!
Os olhos doconde
pousaram sobre Marta, enquanto a enfermeira cúmplice do médico, que logo
acudira, fingia pressa em demonstrar os seus afetuosos cuidados. Ele
ajoelhou-se junto dela e depondo um beijo em sua fronte cândida como a neve,
sussurrou:
- Marta querida, não
tenha medo... Nem que eu tenha de mover céu e terra, hei de encontrar a nossa
filha! Meu coração me diz que o conseguirei. Deus nos concederá esta graça e
ela nos será restituída, verá.
Enquanto isto, o
médico, por trás dele, trocava um olhar com a marquesa Renata que, pela fresta
da porta, havia assistido à dolorosa cena, fremindo de sádico prazer.
Aqueles dois seres
abjetos, dignos em tudo um do outro, pensavam que todos os esforços que
Fernando fizesse seriam inúteis. Maria "Flor de Amor", da qual se tinham
conseguido apossar, já definhava numa cela da sinistra clínica, sem imaginar
que seus pais estavam a poucos passos dela. "Pobre Fernando!",
murmurou Renata entre dentes, e seu rosto belíssimo se contraiu, num trejeito
cruel. “Que erro tremendo você cometeu, pondo-se contra mim, expulsando-me de
sua casa! Você há de encontrar uma filha, sim, mas não será a sua! Não demorará
muito evocê apertará nos braços a filha minha e de André de Saint-Evremont,
aquele com quem eu o traí! Esta será a minha vingança, conde Fernando! E juro
que hei de arruiná-lo, hei de tirar-lhe tudo o que você possui e de que se
orgulha! Quero vê-lo andrajoso, sofrendo, rastejando aos meus pés como o último
dos homens! Só então talvez me considere satisfeita.”
Naquele mesmo dia,
Marta Aubert, como uma criança que ignora o que acontece à sua volta, foi
deitada numa ambulância e depois das últimas falsas recomendações do doutor
Démon, transportada para o suntuoso palácio do conde de Chanteloup.
Assim, como uma
infeliz quase sem vida, Marta entrava na casa onde deveria ter entrado como
dona muitos anos antes, não fosse a infernal maldade da marquesa Renata.
Um belo apartamento
da luxuosa mansão, com janelas que deixavam ver o belo jardim florido, foi
preparado para Marta.
O conde Fernando, em
seguida, entendeu ser necessário encontrar uma pessoa ativa e de confiança, que
se encarregasse deassistir à enferma. O problema não era dos mais fáceis de
solucionar, mas, enquanto o fidalgo se achava ainda incerto sobre quem deveria
escolher, lembrou-se de Flora Sardon.
Era a jovem para quem
ele, impelido pelo seu bom coração, havia readquirido a última recordação da
família, que ela fora obrigadaa vender, premida pelasua falta de recursos.
Ela dera ao conde o
endereço da Pensão onde residia. Foi ali que Fernando a procurou e
oferecendo-lhe um ótimo ordenado, pediu-lhe que aceitasse a incumbência.
Comovida com adolorosa estória
de Marta, mais do que pelo desejo de ganhar dinheiro, Flora aceitou.
Transferiu-se sem demora para o Palácio Chanteloup, onde se dedicou com todo o
entusiasmo, à nobre missão.
A partir daquele dia,
os mais insignes e hábeis especialistas em moléstias mentais se alternaram à
cabeceira de Marta.
A infelizsubtraída
aos maléficos processos do doutor Démon e de Viviana parecia melhorar um pouco,
fisicamente, mas o cérebro torturado se mostrava refratário a todos os cuidados. A ciêncianão
poderia fazer mais nada para devolver a razão à Marta.
Talvez apenas uma
violentíssima emoção pudesse operar o milagre. Existia, por conseguinte, uma
única possibilidade de restituir a razão à louca, segundo o parecer dos médicos:
encontrar a filha desaparecida, "Flor de Amor", cuja lembrança era
ideia fixa para Marta.
Que emocionante, Paulo! Que papel terá Flora na recuperação de Marta? Será que Fernando será enganado pela filha falsa? Mistérios... Parabéns!
ResponderExcluirPaulo, que situação triste a de Marta, mas pelo menos saiu daquele inferno. Mas Flor de Amor continua lá, pobrezinha! Emocionante! Muito bom!
ResponderExcluiroi Paulo gostaria de saber onde está o primeiro capitulo da Segunda parte do Inferno de um Anjo...
ResponderExcluirGatinha Mineira Lacerda, aqui José Eugênio, administrador deste blog. O endereço que pediu é: http://biscoitocafeenovela.blogspot.com.br/2012/12/o-inferno-de-um-anjo-segunda-parte.html.
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