O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo XXXV
O HOMEM MISTERIOSO (CONTINUAÇÃO)
No
palacete do barão de Rastignac, depois da celebração do matrimônio de Luís
Paulo e Denise, em vez da paz e da felicidade, parecia que haviam entrado o
desespero e a tristeza. Luís Paulo já não era mais o alegre e animado rapaz,
infatigável promotor de divertidas reuniões e festas. Seu semblante agora
refletia tristeza, desventura, desânimo, e ele passava longas noites de insônia
no quarto que ocupara quando solteiro, enquanto Denise continuava a
torturar-se, em desespero, no grande quarto matrimonial. O remorso atormentava
o coração do jovem barão e quando conseguia dormir um pouco, seu sono era
agitado por pesadelos, que o torturavam tanto, ou, mais, do que os pensamentos
que tinha quando acordado. Via sempre Maria "Flor de Amor", com os
cabelos esvoaçantes, os olhos cheios de pavor, a chamar por ele, do alto do
parapeito de enorme ponte, sob a qual corria um rio caudaloso. Quando, porém,
cheio de horror, se lançava em seu socorro, no momento crítico, em que estava
quase para alcançá-la com seus braços fortes, a moça, soltando um grito
estridente, precipitava-se nas águas impetuosas do rio e era arrastada pela
violenta corrente... Era o momento em que Luís Paulo acordava sobressaltado de
seu pesadelo, molhado por um suor frio, como um agonizante. O transcorrer dos
dias em nada diminuíram a dor nem a paixão do jovem barão. Na sua mente e no
seu coração estava sempre a lembrança inapagável de Maria "Flor de
Amor".
-
Teria eu de viver mil anos. - dizia Luís Paulo a si mesmo - e não conseguiria
esquecer essa criatura angelical, que penetrou na minha alma, que está no meu
sangue! Não quero pensar que esse mau sonho corresponda à realidade. Não me
resigno a aceitar a idéia de que minha idolatrada "Flor de Amor"
tenha morrido. A morte não pode ter-me roubado o anjo de minha vida. Algo tem
de acontecer para que os meus olhos voltem a contemplá-la, que sem ela, longe
dela, a vida é para mim o pior dos tormentos, a mais pesada das cruzes!
Em
consequência de passar noite e dia entregue a estas amargas e dolorosas
reflexões, Luís Paulo vivia devorado pela melancolia e facilmente se irritava,
deixando de ser afetuoso e cordial para com os seus servidores. Durante o dia,
o barão Luís Paulo passava a maior parte do tempo na biblioteca do palácio.
Tentava distrair-se com a leitura, mas não o conseguia. Aquela imensa sala
cheia de livros tinha grandes janelões e, através das suas vidraças, podia
ver-se o magnífico jardim do palácio. Mas os encantos da natureza não mais lhe
interessavam, não olhava para as flores, nem para os pássaros, dos quais em
outro tempo fora muito amigo. Agora Luís Paulo vivia não como um homem
afortunado, na plenitude de sua existência, mas como um morto-vivo. Uma noite,
Luís Paulo perambulava pela biblioteca, cujas luzes não quis acender. No
silêncio que o rodeava, percebeu o rumor das rodas de um veículo que avançava
pela alameda principal do jardim. Aproximou-se de um dos janelões e viu que uma
charrete iluminada pela débil luz de dois lampiões vinha em direção de uma das
portas do palácio. Não imaginando quem pudesse ser àquela hora da noite, em vez
de chamar o mordomo, ele mesmo abriu uma das bandas da porta para poder receber
o recém-chegado, que naquele momento, após fazer parar o veículo, estava
descendo do mesmo. O desconhecido vestia o hábito peculiar dos frades
capuchinhos. Era alto, magro, a espessa barba enquadrava seu rosto e seus olhos
tinham a perspicácia e a malícia de uma raposa.
-
Boa noite, barão de Rastignac - exclamou o visitante noturno. - Folgo em ver
que o senhor ainda não se recolheu ao leito, porque nesse caso teria sido
forçado a incomodá-lo.
-
Mas... Quem é o senhor, padre? - perguntou Luís Paulo com estranheza. - Não me
parece tê-lo visto nunca antes de agora.
-
Então o senhor não me reconhece? Este hábito é apenas um disfarce. Não sou um
frade capuchinho. Sou o detetive Ubaldo, que o senhor bem conhece! A barba e o
hábito me servem para despistar melhor aqueles a quem preciso vigiar - explicou
o investigador.
-
Faça o favor de entrar, senhor Ubaldo. Venha comigo. Na biblioteca poderemos
conversar sem sermos interrompidos.
O
detetive atendeu ao convite, entrando na suntuosa mansão de seu cliente, que o
instalou numa poltrona, no grande salão da biblioteca. O barão Luís Paulo
sentou-se em frente a Ubaldo.
-
Estou esperando ansiosamente as notícias que, sem dúvida, motivaram sua visita.
Que conseguiu averiguar a respeito de Maria "Flor de Amor"? -
perguntou o jovem barão, com palavras em que vibrava a maior ansiedade.
-
Não são boas as notícias de que sou portador - respondeu Ubaldo, dando a seu
rosto a expressão mais triste e compungida que lhe foi possível. -
Verdadeiramente lamento, quisera ter trazido para o senhor, barão, as melhores
notícias, mas o destino se interpôs e...
-
Deixe de preâmbulos, que não posso suportar - gritou Luís Paulo, irritado pela
oca fraseologia do investigador. - Diga de uma vez, boas ou más, as informações
que conseguiu obter.
-
Estou de acordo com seu desejo, senhor barão. Com a maior tristeza lhe comunico
que Maria "Flor de Amor"... Morreu!
-
Não pode ser verdade – proferiu o jovem barão. - Se ela tivesse morrido, meu
coração que tanto a ama teria estourado dentro do meu peito!... Penso que o que
o senhor acaba de dizer é apenas uma suspeita, nunca uma total e absoluta
realidade.
-
Bem quisera eu que fosse apenas uma suspeita - disse Ubaldo com voz
enrouquecida. Se a descrição que o senhor me fez dessa moça é rigorosamente
exata, não pode haver dúvida. O corpo de uma linda jovem loura, olhos azuis,
idade entre dezoito e vinte anos... Foi recuperado no dia de ontem e hoje já
foi autopsiada pelos médicos.
Luís
Paulo apertou a cabeça entre as mãos desesperado.
-
Que horrenda desventura a minha! Oh, sou o mais infortunado dos homens! - gemeu
Luís Paulo.
Em
seguida acrescentou:
-
Quero vê-la. Quero dar-lhe o último beijo.
-
Senhor barão, não lhe aconselho ver a morta. Aquele seu lindo rosto foi
impiedosamente ferido pelas pedras do fundo do rio e mordido pelos peixes. Os
olhos que seriam seu encanto, já não estão nas órbitas. Dá horror ver o estado
a que ficou reduzido. Conserve a lembrança daquele rosto tal como o senhor o
viu pela última vez, não acrescente à sua dor e amargura a tétrica visão
daquele pobre rosto tão horrivelmente desfigurado!
Luís
Paulo permanecera imóvel com os olhos parados. Parecia ainda não estar
convencido.
Com
a teimosia de uma criança, apegava-se à convicção de não ser verdade aquilo que
ouvira, procurava convencer-se de que tudo não passava de um pesadelo, que logo
passaria e o deixaria em paz.
-
Morta a criatura que eu adorava! Não, não pode ser... O destino não pode ser
tão cruel! Arrebatar-me toda esperança de felicidade! "Flor de Amor",
a pétala que perfumava minha vida e era toda a poesia e o culto do meu coração!
Totalmente
indiferente à dor do jovem fidalgo, Ubaldo, o detetive, com o ar de quem levou
a termo um assunto fastidioso e que se sente feliz por poder, afinal, ir
embora, disse:
-
Penso que o senhor prefere ficar só, agora. Lamento ter sido eu o portador da
confirmação da morte dessa moça, mas o senhor compreende que não podia agir de
outra maneira. Boa noite, senhor barão...
Luís
Paulo, que se havia deixado cair numa poltrona com os cotovelos apoiados aos
joelhos e as mãos pendentes, brancas e como que sem vida, não deu nenhuma
resposta. Mesmo depois que o falso frade partiu. Por longo tempo o jovem barão
permaneceu naquela posição, com a cabeça caída, vencido, destroçado pela força
do destino adverso. O triste soar de um relógio no vestíbulo, sobressaltou-o.
Parecia que aquelas badaladas se destinavam a recordar-lhe que, acontecesse o
que acontecesse, o tempo ia sempre avançando, lento e inexorável, sem tomar
conhecimento das tragédias que sem cessar acontecem neste nosso mundo. Como um
autômato, Luís Paulo se ergueu da poltrona e deixou a biblioteca, dirigindo-se
lentamente para o vestíbulo. Naquele momento, o mordomo, um bom velho que o
vira nascer, surgiu como uma sombra no ângulo mais escuro, envolto num longo
capote. Tinha ouvido rumor e vozes na sala, receando que o barão, cujo estado
de saúde já o vinha preocupando há vários dias, estivesse a precisar de
auxílio, viera ver o que ocorria. A expressão que leu no semblante de seu
patrão confirmou todas as suas pessimistas apreensões e suposições e, embora
desde há certo tempo todos andassem temerosos das crises de cólera do fidalgo,
o ancião decidiu enfrentá-lo e lhe disse, em tom respeitoso, mas em que havia
certa autoridade, necessária, que ele compreenderia, naquele momento:
-
Senhor barão... O senhor vai para a rua a esta hora? O senhor está mortalmente
pálido, vê-se que não está passando bem. Deve repousar, senão vai adoecer
gravemente. Quer que chame um médico?
-
Deixe-me passar - disse Luís Paulo, com voz rouca. - Quero andar um pouco...
-
Mas, senhor barão, a noite vai alta... O senhor está enfermo... Onde pretende
ir? Espere ao menos que amanheça o dia!
-
Deixe-me passar, já disse! Saia do meu caminho!
-
Não posso permitir que o senhor vá andar por aí, nestas condições. Se algo de
ruim lhe suceder, a senhora baronesa nunca me perdoará!
Aquela
referência a Denise teve o poder de aumentar ainda mais a ira do rapaz. Com um
movimento brusco, inesperado nele, que era a própria imagem da gentileza e da
brandura, afastou de si o mordomo, e saiu pela porta do jardim, dirigindo-se
para a coudelaria.
Um
minuto depois, montado no cavalo que estava mais perto dele, deixava a quadra.
Passou veloz diante do mordomo, que viera atrás dele, e que teve de dar um pulo
para trás, a fim de evitar ser atropelado. Logo desapareceu veloz pela alameda,
na mesma direção em que pouco antes por ali passara o detetive particular. O
saibro chiava sinistramente sob os cascos do animal, mas Luís Paulo não
percebia o perigo que corria e esporeava cada vez mais o cavalo, com os olhos
fixos no vazio, fazendo as curvas da estrada numa velocidade de louco, exigindo
tudo do potente animal.
Qual
era a intenção de Luís Paulo, no seu desespero de amor? Suicidar-se?