O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXXIV
NOITE
DE PESADELO
A
grande carruagem estacionou a poucos metros da entrada do palácio dos barões de
Rastignac.
Embora
a hora fosse avançada, a criadagem formou ala para a passagem dos recém-casados
que, no entanto, pouco se demoraram no vestíbulo, cintilante de luzes, e logo
se recolheram ao apartamento nupcial. Denise, cheia de arrogância, nem sequer
se dignara a lançar um olhar ao mordomo, aos demais servidores, à camareira, e
isso não causou boa impressão àquela gente que, há tantos anos, vinha prestando
seus serviços no palácio e que tinha esperado com viva animação a chegada do
novo barão, com a esposa. Luís Paulo, por sua vez, tão profundamente perturbado
e cheio de desespero, nem sequer se dava conta do que lhe acontecia em torno...
As
luzes da mansão, até então acesas, uma a uma foram se apagando, até mesmo no salão
de festas, esplendidamente ornamentado, no qual os nubentes nem sequer
entraram. Tudo mergulhou na escuridão. Apenas duas janelas permaneceram
iluminadas: as do principesco quarto de dormir dos noivos... Ali, de costas
para o leito nupcial, que os devia acolher, a ele e à sua mulher, o rapaz
permanecia ensimesmado, sem dizer palavra. Denise, emocionada, esperava que
Luís Paulo a tomasse nos braços e a cobrisse de beijos. Mas o rapaz, imóvel,
parecia uma estátua de mármore. Só depois de algum tempo, o jovem barão,
encaminhando-se para a porta, disse baixo, com voz amarga:
-
Boa noite, Denise. Durma bem...
Por
instantes, a filha da marquesa Renata Duplessis permaneceu indecisa, estupefata,
o homem por causa de quem tivera a coragem de se opor à terrível vontade da
própria mãe, ainda dominado pela lembrança da outra, nem sequer se importava
com a sua presença como mulher, e com a maior frieza e indiferença que se
pudesse imaginar, limitava-se a desejar-lhe uma boa noite?! Era uma afronta
inqualificável, terrível! Um insulto a ela, à sua beleza, um golpe que a
atingia em todo o seu ser! Por alguns segundos, a ira se apoderou dela,
cegando-a, fazendo-a sentir o desejo impulsivo de matá-lo! Mas a paixão que
sentia por ele sufocou rapidamente este sentimento e, correndo para ele,
colocando-se à sua frente, linda e trêmula de ansiedade, Denise perguntou:
-
Luís Paulo? Que pretende fazer?
Ainda
uma vez a indiferença do marido a envolveu e a perturbou:
-
Já é quase dia e eu estou muito cansado. Prefiro repousar, se me faz favor...
-
Mas, Luís Paulo, você está esquecendo que somos marido e mulher... Que estamos
casados!
-
Sim, bem o sei, infelizmente.
-
Mas não me pode tratar desse modo... Não tem esse direito!
O
jovem barão ergueu um braço, para afastá-la de si, delicadamente, mas com
firmeza:
-
Tenho o direito de agir como melhor me pareça, Denise, e ninguém jamais poderá
me obrigar a fazer o que não acho justo e de que me envergonharia por toda a
vida.
A
moça não o deixou afastar-se, cheia de desespero e despeito, envolvendo-o nas
ondas do perfume inebriante que se desprendia do seu corpo escultural.
-
Luís Paulo, vai deixar-me sozinha em nossa noite de núpcias? Se você soubesse o
quanto ansiei por este instante - murmurou junto aos lábios dele. - Nem imagina
quantas noites insones passei, pensando em chegar a ser sua esposa! Não me
deixe... Não deve... Você me pertence... Deve ser todo meu!
-
Sim, sou seu marido, mas apenas, perante a lei. Você se obstinou em casar
comigo, obrigou-me a concordar, mas não pode constranger minha vontade a ponto
de fazer o que todo o meu ser se recusa a realizar. Denise, procure
compreender: eu não sou um bruto, um rústico, um homem primitivo!
Denise,
lívida, agarrou-o pelos ombros, tentou contê-lo, enquanto lágrimas de raiva lhe
corriam pelas faces.
-
Eu sei! - gritou-lhe em pleno rosto... Você não esquece aquela sirigaita,
aquela sem-graça que o esperava à saída da igreja! Pensa que eu não percebi
tudo? Mas juro que o farei esquecer aquela criatura vulgar, que depois de mim,
que agora sou sua esposa,você não desejará nenhuma outra mulher no mundo! Meu
bem, não recuse os meus beijos, as minhas carícias que expressam o mais intenso
amor!
Mas
Luís Paulo a repeliu, frio, quase enojado. Foi até a janela e ficou a olhar,
absorto, a neblina leve da madrugada que se aproximava e se estendia sobre o
campo.
Seus
olhos estavam semicerrados e uma ruga amarga dava ao seu belo rosto uma
expressão quase trágica.
Denise,
que se sentia abatida, vencida, humilhada, recusada, olhava-o sem dizer
palavra.
Súbito,
o jovem barão se voltou para ela, enquanto em seu rosto aparecia uma estranha
luz de felicidade, mas de insanidade também.
-
Denise! - exclamou. - Você não ouviu?
-
Ouvi o quê? Não ouvi nada...
-
Sim! Eu ouvi a voz dela, ao longe! E ainda a ouço... É ela, sim, e me chama!...
-
Luís Paulo! Enlouqueceu?!
-
Cale-se! Cale-se!
E
o jovem fidalgo agarrou com força o fecho da porta-janela, abrindo-a e deixando
entrar no aposento o ar gélido da madrugada. Debruçou-se para fora, vibrante de
ansiedade, querendo ouvir mais.
Nada,
porém, lhe chegou aos ouvidos porque depois de alguns minutos tornou a
fechá-la, com gesto brusco, murmurando:
-
Não a ouço mais... Sua voz se perdeu ao longe, levada pelo vento...
Deu
alguns passos cambaleantes até o meio do quarto. Denise, ainda não vencida de todo,
agarrou-o por um braço, puxou-o como o faria com uma criança para junto de si.
-
Esqueça essa mulher! Você agora só a mim pode amar e terá de me amar até que a
morte nos separe!
Exasperada
com a frieza do marido, esbravejou:
-
Mas, afinal, de que você é feito? Não é possível que nossa vida continue assim!
De que me serve estar casada, então?
Luís
Paulo, no entanto, não desejava no mundo o amor de outra mulher que não fosse a
sua Maria "Flor de Amor". E então, com suprema indiferença, sem se
dignar a escutar os pedidos da que, contra a sua vontade era sua mulher,
fizesse.
-
Agora, basta, Denise! - exigiu. Sou um homem, sim, mas um homem apaixonado por
outra mulher, eu disse a você lealmente isso, antes de nos casarmos. Você quis
que a cerimônia fosse celebrada de qualquer jeito, apesar de tudo, e agora tem
que suportar as consequências!
-
Mas eu o amo!... Não posso viver sem você!
-
Lamento, mas é preciso que se conforme. E agora vá dormir. Deve estar também
bastante fatigada. E procure fazer com que as cenas desta noite não se tornem a
repetir, por favor. Embora não a ame, não sinto ódio por você, sou seu amigo.
Procure fazer com que o meu sentimento em relação a você não se transforme
em... Desprezo. Boa noite.
E
enquanto a moça, derrotada, aturdida, quase louca, se lançava sobre o leito no
qual pensara passar sua noite de núpcias, o barão saiu do aposento, sem sequer
a olhar uma última vez.
Quando
os primeiros clarões da manhã nascente iluminaram o quarto nupcial, Denise se
levantou cambaleante. Todo o corpo lhe doía como se durante a noite tivesse
executado alguma penosa e dura tarefa. Sentia-se sufocada, como se lhe faltasse
o ar, e tendo despido o vestido de noiva, agasalhada num tépido roupão foi
abrir a porta-janela que dava para o jardim, de onde lhe chegaram os primeiros
cantos dos passarinhos, saudando o nascer do sol.
A
ira e o desespero a devoravam, até em sonhos o seu casamento tinha-lhe
aparecido como prenúncio de grandes desventuras.
Gostaria
de gritar, debater-se, destroçar tudo o que a cercava, tanta era a raiva que
havia em seu coração!
Ela,
a soberba, a vaidosa moça habituada a ver os homens aos seus pés, àquela noite
experimentara a mais terrível das humilhações de sua vida: a da recusa!
Sentia
que odiava Luís Paulo com toda a sua força, mas, ao mesmo tempo, não podia
deixar de amá-lo e de admirá-lo por sua firmeza, por sua tremenda força de
vontade.
Numa
súbita decisão, abrindo a porta do quarto, atravessou uma sala esplendidamente
mobiliada, saiu ao patamar e começou a descer a escadaria de mármore.
O
palácio estava mergulhado no mais profundo silêncio. Surpreendeu-se ao querer
saber onde poderia estar localizado o quarto de solteiro de Luís Paulo.
Naturalmente, ele o fora ocupar, pois não quisera compartilhar com ela o quarto
matrimonial. Com um gesto de rancor, procurou livrar-se daquele pensamento,
imaginando que ele estaria, talvez, sozinho àquela hora, e, ainda acordado, a
evocar a imagem da outra. Quando abriu a porta principal, o jardim circundante
se ofereceu aos seus olhos, envolvendo-a com seu ar oxigenado e balsâmico, numa
espécie de abraço da própria natureza. Quase sem o perceber, imersa em seus
pensamentos, foi avançando pela grande alameda uniformemente coberta de areia
fina, onde seu calçado não fazia o menor ruído. Deu a volta por outra grande
alameda florida, ultrapassou a fonte quadrangular da qual a água jorrava
espumejante, num repuxo artístico e, por fim, sentindo-se um pouco cansada,
sentou-se num banco de pedra. Naquele justo instante, uma voz que bem conhecia,
irônica, estridente, disse às suas costas:
-
E então, minha filhinha? Como foi sua noite de núpcias?
Denise
virou-se rápida, empalidecendo. No rosto da marquesa Renata notava-se um
sorriso zombeteiro de satânica alegria.
-
O caso, minha queridinha - observou, aproximando-se da filha incapaz de dizer
palavra, - é que estou vendo, pela sua cara, que as coisas não correram
precisamente como deveriam para uma esposa no início da lua-de-mel. Sua
presunção sofreu um rude golpe, não? Ah, ah, ah!...
Aquela
risada reanimou o espírito combativo da jovem, que se sentiu tomada de furor
com o modo pelo qual a mãe conseguira ler em seu pensamento.
-
Que veio fazer aqui? - gritou. - Esta é a minha casa! Vá embora! Não a quero
ver diante de mim! Vá-se embora!
Ao
contrário do que seria de esperar, a marquesa Renata nem sequer demonstrou
indignação, ou a menor estranheza com o tom nada respeitoso da filha. Continuou
a fitá-la, sem que o sorriso zombeteiro desaparecesse de seus lábios. E
respondeu:
-
Não tenha receio, já irei embora. Andava por estas bandas apenas para dar um
passeio e para me certificar de uma certa coisa. Mas agora já posso voltar,
desde que você teve a gentileza de vir ao meu encontro... Queria estar segura
de que Luís Paulo se comportou com você como eu desejava...
Fora
de si, com as unhas contraídas, Denise fez menção de avançar para a mãe. Mas os
olhos magnéticos da marquesa Renata a detiveram, como que a hipnotizando.
Depois a fidalga sibilou:
-
Pobre infeliz! Menina idiotinha que pensa ser uma grande sedutora. Eu deveria
destruí-la, mas me causa pena... Você tem o peso insuportável da humilhação no
coração, você, que é tão soberba, tão presunçosa! Imaginou que me havia
liquidado, quando representou aquela comédia diante do conde Fernando? O fato,
por si só, de que você pensasse isso, dá uma ideia da sua estupidez! E agora,
vá, vá à procura de Luís Paulo que certamente tornará a humilhá-la. Vá! Corra
para ele. Para mim, você representa tão pouca coisa, que nem sequer sinto ciúme
de você, pobre Denise! Pode servir para namorar ladrões e assassinos como
Afonso, mas não para um homem como o barão Luís Paulo. Ele precisa ser amado
por uma mulher como eu, e mesmo que tenha de semear a morte e a destruição em
meu caminho, juro que saberei conquistar o seu amor!
Mordendo
os lábios, quase até fazê-los sangrar, incapaz de escutar ainda por mais tempo
aquelas palavras desdenhosas e sérias ameaças, Denise, que agora era a baronesa
de Rastignac voltou-se e saiu correndo, enquanto Renata, a mulher infernal,
deixava-se ouvir em uma nova gargalhada.
Agora que foi desprezada, tenho a impressão que Denise vai aprontar mais ainda...
ResponderExcluirPaulo, por essa Denise não esperava! E Renata ainda apareceu pra tripudiar rsrsrs. Gostei muito! Bjs.
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