O
conto que apresentamos abaixo é de autoria de Herberto Sales. Para maiores
informações sobre o autor, favor consultar: http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/search?updated-max=2008-04-05T13:40:00-07:00&max-results=3&start=6&by-date=false.
Boa
leitura!
EMBOSCADA
Os
dois homens começaram a descer a encosta. O velho Patuá, vinha na frente. Era
um cabra de ombros estreitos, grande bigode e pernas em arco, muito firmes
ainda para a sua idade. O negro Guido seguia-o de perto, sustendo na mão
esquerda a capanga de munição. Na semi-obscuridade da madrugada, o vale
esboçava amplos paredões hirtos, encaixotando funebremente o rio. Os dois
homens saltavam de uma pedra para outra, desciam pelos lajedões talhados quase
a pique, subiam por íngremes atalhos, e logo reapareciam atrás de uma touça de
malva ou de vela,me, com uma agilidade de cabritos monteses. Agora, porém,
tinham eles conseguido alcançar um trecho melhor do caminho, e andavam num
passo regular, encolhidos nos capotes surrados.
O ar era frio e úmido.
O ar era frio e úmido.
—
Será que ele passa hoje? – perguntou Guido.
—
Tem de passar — respondeu o outro homem. — Não é possível que o santo dele seja
tão forte.
—
Olhe que já faz dois dias que nós esperamos por ele...
—
É assim mesmo. Tem emboscadas que dão muito trabalho. Você ainda não viu nada.
—
De qualquer maneira, confesso que isto já está me amolando — disse o outro.
O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim mescla um pedaço de fumo de corda e, com uma dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo hábito seu, do qual trazia marcas nos longos caninos encardidos.
O velho Patuá sacou do bolso do paletó de brim mescla um pedaço de fumo de corda e, com uma dentada, arrancou um naco para mascar. Era um antigo hábito seu, do qual trazia marcas nos longos caninos encardidos.
—
Quanto mais se você tivesse ajudado agente a matar o Major Cavalcanti! — disse.
O que foi que teve?
—
Nós esperamos por ele na emboscada oito dias seguidos.
—
Oito dias? Ah, eu não era capaz de ter tanta paciência. Juro.
—
Será que nunca lhe aconteceu uma coisa destas?
—
A mim? Deus me livre!
Andando
sempre, os dois homens contornaram uma grande rocha, e atravessaram em seguida
uma moita de capim-gordura. O negro Guido olhou: amanhecia. A aurora barrava o
horizonte de vermelho, e os píncaros lembravam massas carbonizadas em meio a um
espantoso incêndio. Então o velho Patuá, que usava chapéu de couro e trazia as
calças arregaçadas, disse de repente:
—
Pois pode preparar o dedo, companheiro, que de hoje ele não passa.
—
Como é que você. pode saber disso? — indagou o outro homem, meio intrigado.
—
Como eu posso saber? Bem... Isso não lhe interessa. Sobre certas coisas é
melhor a gente; não fazer perguntas.
O
negro Guido era muito supersticioso e revelava uma espécie de místico respeito
pelo seu companheiro. Disse com hesitação:
—
Eu sempre ouvi dizer que você era um mestre em rezas bravas... Na verdade, eu
estou aqui faz somente um mês. Mas em minha terra me contaram muitos casos que
aconteceram com você.
—
Não lhe disseram que eu tinha parte com o Diabo? — perguntou sardonicamente o
velho.
E o outro, olhando-o de lado:
E o outro, olhando-o de lado:
—
Você sabe que o povo fala muita coisa... Ouvi dizer que você tinha reza para
amarrar rastro, e até para fazer uma pessoa desaparecer.
O
velho Patuá assumiu um ar de mistério:
—
Você fala demais, Guido.
—
Eu não falei por mal... — disse o outro homem, arrancando uma haste de capim
com a larga mão de palma musculosa. — Se você não gosta de perguntas,
acabou-se. Eu só quero é que ele não deixe de passar hoje.
—
Pois fique calado, e espere.
Os
dois homens subiram uma rampa, entraram por um atalho, e pararam defronte de
uma pequena caverna. Em torno, a vegetação era rude e agressiva. Instalaram-se
atrás de uma pedra, como já vinham fazendo havia dois dias, e ó velho Patuá
observou:
— Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente pode atirar nele à vontade.
Estavam instalados na crista de um precipício que dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra. O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado entre selvagens e imponentes escarpas. No céu, um tom róseo substituía, agora o vermelho sangüíneo de antes. Pássaros-pretos cantavam.
— Este lugar é o melhor possível. Daqui a gente pode atirar nele à vontade.
Estavam instalados na crista de um precipício que dominava a estrada íngreme e pedregosa da serra. O rio escachoava adiante, no fundo do vale rasgado entre selvagens e imponentes escarpas. No céu, um tom róseo substituía, agora o vermelho sangüíneo de antes. Pássaros-pretos cantavam.
—
Quer fazer uma combinação, Patuá? perguntou o negro Guido.
—
Qual é?
—
Como você tem melhor pontaria, atira na cabeça dele.
—
E você?
—
Bem... Eu atiro nas costas. É mais fácil.
O
velho Patuá, teve um risinho sarcástico:
—
Não pensei que você fosse tão nervoso, Guido.
O
outro homem guardou silêncio, demonstrando não ter gostado da observação do
companheiro. De repente, atentando na pedra que ficava à entrada da caverna,
foi empolgado pela certeza de estar bem protegido. "Caso ele reaja" —
pensou — "toda a vantagem é minha, pois estou numa boa trincheira."
Depois desembainhou a sua longa e afiada faca, de dez polegadas, e começou a
cortar fumo para um cigarro.
Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha uma expressão cruel e concentrada) para inspecionar mais uma vez o local. Completando de maneira magnífica, as virtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a crista um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada da caverna. Olhando através da folhagem, que descia em cortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos, àquela, hora deserta, por onde o homem teria de passar.
Nisto o velho Patuá levantou-se (tinha uma expressão cruel e concentrada) para inspecionar mais uma vez o local. Completando de maneira magnífica, as virtudes do esconderijo, alastrava-se por toda a crista um imbezeiro, ocultando inteiramente a entrada da caverna. Olhando através da folhagem, que descia em cortina, o velho Patuá viu a estrada coberta de seixos, àquela, hora deserta, por onde o homem teria de passar.
—
Vai ser uma pontaria bonita — disse. — Ele não vai nem gemer.
O
chão da caverna era coberto de capim — tufos verdes, amarelados, macios — e o
velho Patuá sentou-se. Depois pegou o clavinote e o pôs sobre as pernas,
retirando da capanga a munição para a carga.
—
Agora vou carregar, Guido. E você vai ficar de vigia — disse. — Sentado como
estou, não posso enxergar a estrada. A pedra não deixa. Ficando de joelhos,
você domina a estrada toda. É só um instante, Guido. Eu carrego a arma
depressa.
—
Está certo — concordou o outro homem.
—
Está enxergando bem? — perguntou ainda o velho.
—
Estou.
De
joelhos como se achava, Guido dominava realmente toda a estrada. A pedra lhe
dava na altura do peito, e as folhas do imbezeiro ocultavam-lhe a cabeça. Nessa
posição, acendeu um cigarro, tendo o cuidado de soltar as baforadas para dentro
da caverna, o que fez por duas vezes. Mas logo depois, atinando com a
inconveniência de estar fumando ali, pois a fumaça, poderia, denunciar sua
presença no local, apagou imediatamente o cigarro, esmagando-o na ponta de uma
pedra. Depois soprou com força, para expelir o resto de fumaça que tinha na
boca.
—
Cadê a rolimã? — perguntou o velho Patuá.
—
Você vai carregar com ela? — disse Guido, sem desviar os olhos da estrada.
—
Vou. Você não quer que eu atire na cabeça dele? Portanto, vou precisar de uma
carga possante. E ande depressa. Porque antes das sete horas ele deve estar
passando por aqui.
Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã, que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalhara numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de pólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão e espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era do tamanho de um caroço de pitanga.
— Tome — disse, passando-a ao companheiro.
Guido revolveu a capanga para procurar a rolimã, que, em sua terra, lhe dera um ferreiro que trabalhara numa garagem. Seus dedos tocaram em cartuchos de pólvora, barbantes, buchas, latas de chumbo meão e espoletas, e trouxeram afinal a esfera de aço que devia servir de bala. Tinha ela um brilho frio e sólido, e era do tamanho de um caroço de pitanga.
— Tome — disse, passando-a ao companheiro.
O
velho Patuá tomou a rolimã entre os dedos e a examinou por um momento, como se
estivesse avaliando o estrago que ela iria produzir na cabeça do homem a ser
morto. Com ela carregou a arma, juntando boa dose de pólvora e algum chumbo
grosso. Depois socou a bucha e colocou a espoleta.
—
Pronto? — perguntou Guido.
—
Pronto — respondeu o velho, limpando nas calças a mão suja de pólvora.
E
depois de mais uma vez examinar a arma:
—
Agora você carregue a sua, que eu fico de vigia.
Mais
que depressa, o negro Guido trocou de lugar com o companheiro e tratou de
carregar o seu clavinote. Notando, porém, ao retirar a munição da capanga, que
a carga talvez não ficasse bastante forte, perguntou ao velho:
—
Você não tem aí um chumbo mais grosso do que este meu?
—
Tenho — respondeu o outro homem.
—
Tenho este chumbo cabeça-de-macaco, que serve bem; é chumbo para matar onça.
Tome.
E passou a lata de chumbo ao negro.
E passou a lata de chumbo ao negro.
—
Mas eu acho bom você botar estes pregos também — acrescentou. — Reforça mais.
O
negro Guido recebeu o chumbo e os pregos, e socou, bem socada, a carga do seu
clavinote.
— Não bote chumbo demais não — observou o velho Patuá.
— Não bote chumbo demais não — observou o velho Patuá.
—
Você está pilheriando? — respondeu Guido, guardando na capanga o pedaço de
chifre que lhe servia de depósito de pólvora.
—
Pilheriando?
—
Sim, companheiro. Será que você acha que eu não sei carregar uma arma?
—
Estou avisando por avisar.
—
Fique sossegado. A carga foi bem calculada.
O
velho Patuá voltou-se rapidamente para o companheiro e, vendo que este j á
havia carregado a arma, disse:
–
Bem. Passe o resto de meu chumbo para cá. E agora fique aqui junto de mim.
O negro devolveu o chumbo restante, que o velho guardou apressadamente na capanga, e entrincheirou-se atrás da pedra.
O negro devolveu o chumbo restante, que o velho guardou apressadamente na capanga, e entrincheirou-se atrás da pedra.
—
Eu não estou enxergando bem daqui, não — disse, espiando por entre as folhas do
imbezeiro.
— Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.
— Acho melhor eu ficar atrás da ponta da pedra.
—
Então, fique — concordou o outro homem.
—
E você j á sabe: só atire quando eu mandar.
—
Está certo — respondeu Guido. — Mas eu acho que a gente só deve atirar quando
ele entra naquela, curva.
E
com o dedo apontou o local.
Era
o trecho mais estratégico da estrada, porque ali a vítima poderia ser colhida
pelas costas.
— O tiro vai ser seguro — garantiu Guido.
— O tiro vai ser seguro — garantiu Guido.
O
velho Patuá parecia não estar disposto a aceitar nenhuma sugestão do
companheiro. Como jagunço que j á tomara parte em várias emboscadas, tinha, de
resto, as suas vaidades. Respondeu secamente:
—
Deixe isso comigo. Na hora de atirar eu lhe digo.
Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar de posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da caverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinote contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava uma visibilidade perfeita.
Entretanto, o negro Guido não deixou de mudar de posição, colocando-se atrás da ponta da pedra. O velho Patuá continuou ajoelhado na parte mais alta da caverna, sobre tufos de capim, apoiando o clavinote contra a pedra. O lugar que escolhera proporcionava uma visibilidade perfeita.
—
Eu dava tudo para tomar uma cachaça agora — confessou Guido.
—
É. Mas a garrafa esvaziou desde ontem — respondeu o velho Patuá. — Não tem mais
nem um pingo.
—
Se ele não tivesse se atrasado — disse o outro homem — eu não estava agora com
a garganta seca. Nós trouxemos bastante cachaça.
No
fundo, também o velho Patuá sentia falta da bebida. Entretanto, mordaz, com o
intuito de rebaixar o companheiro, perguntou:
—
Será que você precisa beber para criar coragem?
Mas
já o negro Guido não o escutava:
—
Está ouvindo, Patuá? Está ouvindo?
O
outro homem estava ouvindo. E identificou o ruído como sendo o dos cascos de um
animal que vinha subindo a serra.
—
É. Talvez seja ele — disse. — Vamos nos preparar para fazer fogo.
Os
dois clavinotes estavam apontados em direção à estrada. Os canos tinham sido
apoiados sobre a pedra, e os dois homens se entreolharam. A essa altura, já o
Sol faiscava nos lajedos, e o ar, embora frio, era reconfortante e seco. Um
sabiá veio pousar perto da caverna, mas logo esvoaçou, ao pressentir os dois
homens. Houve em seguida um rumor de folhas, provocado por uma lagartixa em
fuga.
—
Já vem bem perto — disse o negro Guido, com o dedo no gatilho da arma.
O
tropel fazia-se ouvir cada vez mais próximo. De repente, surgiu, no topo do
atalho, a cabeça de um cavalo. O velho Patuá estava calmo, ao passo que o outro
dava visíveis mostras de excitação. A vista da cabeça do cavalo, seus lábios
chegaram mesmo a embranquecer, como se uma sede atroz o tivesse assaltado.
—
Será ele mesmo? — perguntou.
Foi
quando o cavaleiro apareceu. Subia a estrada descuidado, assobiando. Guido logo
reconheceu o fazendeiro Pedro Neves. Então, o que havia de incerteza no seu
espírito transformou-se imediatamente numa sensação de alívio, marcada a um só
tempo de medo e crueldade. Apontou a arma, fazendo mira, sempre com o dedo no
gatilho. Viu o homem parar de assobiar, enxugar o suor do rosto, com um lenço
que de novo guardou no bolso, e acender o cigarro.
Foi
quando o velho Patuá comandou:
—
Fogo!
O
negro procurava fazer um bom alvo, na pontaria contra o paletó de brim cáqui,
onde havia manchas de suor.
—
Fogo! — repetiu o velho Patuá, num tom de irritação.
E,
com o clavinote apontado para a nuca do homem, apertou o gatilho. O negro Guido
acompanhou-o. Dois tiros estrondaram, ao mesmo tempo que a caverna se enchia de
fumaça. Como se uma invisível mão os enxotasse, os pássaros voaram. Um
desabrido tropel foi então ouvido: era o cavalo do fazendeiro, que fugia com os
arreios vazios. Espantado, corria doidamente estrada abaixo – as caçambas
batendo como sinos. Como sinos roucos. Estranhamente roucos.
(O
texto acima foi extraído da Antologia escolar de contos brasileiros,
Edições de Ouro - Rio de Janeiro, s/data, pág. 215, organizada por Herberto
Sales, seleção de Ivo Barbieri e Maria Mecler Rampell.)
Fonte: http://contosbrasileiros.blogspot.com.br/search?updated-max=2008-04-05T13:40:00-07:00&max-results=3&start=6&by-date=false
Nenhum comentário:
Postar um comentário