O
conto que reproduzimos abaixo é da autoria de José J. Veiga.
Para
maiores informações sobre o autor, favor consultar: http://contosdobrasil.arteblog.com.br/227923/JOSE-J-VEIGA-BIOGRAFIA-E-BIBLIOGRAFIA/.
Boa
leitura!
ESPELHO
Quando
uma casa desmorona por velhice mais abandono, parece que alguma coisa da
essência das pessoas que viveram nela e foram felizes — pelo menos por algum
tempo ou alternadamente, já que ninguém é feliz sempre — fica pairando sobre os
escombros e sobre utensílios abandonados ou esquecidos pela última família que
morou nela; tanto que o poeta Pessoa escreveu num poema: "O que eu sou
hoje é terem vendido a casa \ e terem morrido todos \ Desejo físico da alma de
se encontrar ali outra vez...”. Aquela casa deve ter sido vendida várias vezes,
depois envelheceu e por fim caiu.
O
entulho ficou lá enfeando a rua e servindo de abrigo a mendigos e outros desses
que têm a mania de pensar que são rebeldes, contestadores, não querem trato com
o que chamam de sistema, mas não levam esse pensamento às últimas
conseqüências: não abrem mão de um bom churrasco de gato nem do ato mais
visceral de descarregar seus detritos quando se sentem pesados por dentro. Em
todo caso, uma vez aliviados lembram-se de que fizeram uma concessão aos
costumes e pensam que se redimem deixando de se limpar. Cada qual com a sua
filosofia, como disse o general de granadeiros Contumácio Coribantes, vencedor
da Batalha de Filigranas, que, como se sabe, mudou o rumo da história dos
países do lado de baixo do Equador.
Então
o entulho do desabamento ficou lá poluindo a rua e atraindo moscas, lagartixas,
ratos, baratas e outros entes obnóxios, até que saqueadores tomaram
conhecimento e começaram seu trabalho sistemático de extrair e carregar tudo em
que vissem algum valor. Durante dias, talvez semanas, caminhões, kombis e até
burros-sem-rabo, que ainda existem para quem sabe onde achá-los, transportaram
ladrilhos, azulejos, grades, pias, torneiras, painéis de vidraças
milagrosamente inteiros, portas, portais, caixilhos e esquadrias de janelas,
fechaduras antigas ainda perfeitas, algumas sem as chaves; dois ou três
armários enormes de madeira maciça para guardar louça ou roupa de cama e mesa e
que os últimos moradores não quiseram carregar, certamente devido ao tamanho e
ao peso. Esses foram desmontados a duras penas e transportados em um caminhão
novo com placa de Vassouras, RJ, que alguém anotou por curiosidade.
Havia
também um guarda-roupa, esse não tão antigo nem de boa madeira, tanto que não
resistiu ao esborôo da casa, ficou todo quebrado e desconjuntado e não interessou
a nenhum dos primeiros predadores. Mas quando chegou o segundo escalão, o
chamado pente-fino, formado pelos que se contentam com sobras e rebotalhos,
alguém deu uma olhada no guarda-roupa arrebentado, talvez esperando ou
desejando que em alguma das muitas gavetas, quem sabe, tivesse ficado algum
objeto de valor, ou mesmo dinheiro, é impressionante que existe de gente
distraída no mundo, e muitas vezes o prejuízo de um distraído acaba sendo o
lucro de um porfioso.
Dada
a vista nas gavetas, quase todas ocadas por cupins, e nada encontrando, a
pessoa notou que uma porta estava inteira e sã e poderia ser aproveitada, há
sempre colocação para uma boa peça de madeira já curtida pelo tempo e vacinada
contra cupins, podia servir para tampo de mesa, para um banco, para prateleiras
de estante, era só esperar o encontro dela com quem a estivesse procurando, se
esses encontros nunca acontecessem não haveria necessidade de belchiores, que
sempre existiram e sempre existirão.
Depois
de muito esforço, solavancos e engenho porque o puxador, também de madeira,
estava quebrado e não dava pega, o pente-fino conseguiu abrir a porta — e teve
nova surpresa. Do lado de dentro havia um espelho biselado de metro e meio de
altura por sessenta e cinco centímetros de largura em perfeitíssimo estado, só
que por cima da grossa camada de poeira podia se escrever nele com um dedo uma
frase completa, como "Todo governo é delinqüente".
Razoável
conhecedor de coisas antigas, o vasculhador de ruínas imaginou ou percebeu que
o espelho tinha sido reaproveitado naquele armário: a moldura era diferente da
madeira da porta, indicando que o espelho devia ter estado numa parede, talvez
num salão, acima de um bufê ou de um sofá; ou num quarto de vestir, ou em uma
loja de roupa ou calçado. E era importado, provavelmente da França, cujos
artesãos inventaram esse tipo de corte chanfrado para evitar arestas nas
margens de placas de vidro ou de madeira.
Mas
— e o aço? Estaria ainda bom depois de tanta vivência e de tantos sacolejos?
Como
saber, com tanta poeira encrostada em cima? Olhou em volta, viu umas folhas de
jornal jogadas nas ruínas pelo vento. Pegou duas folhas, fez uma pelota,
experimentou. A seco não adiantava, apenas espalhava a poeira. Só molhando o
papel, mas onde achar água? O homem tinha expediente, não ia empacar por tão
pouco. Procurou um lugar protegido da vista de quem passava na rua e urinou na
pelota de jornal. Com o papel molhado limpou duas pequenas áreas do espelho e
por elas deduziu que o aço devia estar bom de ponta a ponta.
Satisfeito
com o achado, nosso homem tornou a fechar a porta do armário, esperando
encontrá-lo intato quando voltasse com uma kombi de aluguel para levar o
espelho; se ninguém o vira antes, certamente ninguém ia vê-lo naquele dia. Mas
antes era preciso agradecer ao santo fumando um bom charuto ali mesmo, com
calma; para que pressa, se o dia estava ganho? Depois de limpado e exposto no
belchior, o espelho não demoraria a encontrar comprador.
Não
errou na previsão. Logo no primeiro dia um decorador se interessou, indagou o
preço. Achou caro, fez uma contraproposta. Experiente, o belchior não quis
vender ao primeiro interessado, mas anotou nome e telefone. Horas depois entrou
um casal jovem procurando uma mesa de jantar extensível. Não gostaram das
únicas duas que havia, ambas precisando de conserto, o que encareceria o preço
final. Quando saíam, viram o espelho. Ouviram o preço, confabularam em voz
baixa, compraram sem regatear.
Depois
de muito debate e experimentação concluíram juntos que o espelho ficaria bem na
sala de visitas, instalado horizontalmente atrás do sofá de três lugares.
Oposto a ele, separando a sala de visitas da de jantar, ficava uma marquesa de
jacarandá trabalhado, também comprada em belchior e restaurada por empalhador
recomendado pelo próprio vendedor De cada lado do sofá havia uma poltrona Luís
XV estofada de veludo caramelo pelo artista Mário Cotas, mas para isso tiveram
de esperar seis meses, a lista de encomendas das dele era enorme. Valeu a
espera. A sala ficou coisa de revista, diziam os amigos.
E
o casal ficou feliz com a sala. Quando saíam para algum compromisso social
sentiam-se como exilados, e arranjavam pretextos para se retirarem mais cedo e
voltarem depressa para a sala acolhedora. Logo perceberam que a alma do
ambiente era o espelho, tudo mais eram acessórios que sozinhos não encheriam os
olhos de ninguém. Sem o espelho ficaria uma sala plebéia, com móveis de sentar,
tapetes, alguns quadros indiferentes, requififes vários — igual a um sem-número
de outras.
Por
causa do espelho, e parece que sem perceber, o casal ficou passando a maior
parte do tempo na sala, e às vezes até dormiam nela, um no sofá, outro na
marquesa. Por que faziam isso? Se perguntados, possivelmente não saberiam o que
responder. Sentiam-se felizes na sala, seria a resposta singela. Mas não
precisavam dar essa explicação a ninguém, primeiro porque eram sozinhos e a
senhora que cuidava da casa e da cozinha dormia fora; segundo, porque achavam
aquilo natural, e o que é natural carece de explicação. Quanto mais olhavam
para o espelho e viam a sala e eles mesmos refletidos no vidro impecável mas
quase etéreo, mais gostavam dele; e já estavam achando que o encontro deles com
o espelho, ou o contrário — o que talvez não fosse a mesma coisa, pensando bem
— podia ser alguma arrumação do destino; e se consideravam escolhidos. Imagine
se o espelho tivesse ido para um novo-rico qualquer, um capadócio, um bicheiro,
um fala-gritado?
Mas,
como disse um cantador, a felicidade é um trono de nuvem, quem se senta nele
deve estar prevenido porque se desmancha à-toa, basta um ventinho, uma palavra
impensada.
Foi
o que aconteceu, ao que parece, porque quando voltaram o filme e o repassaram
para ver se entendiam, ficaram achando que a mudança começara numa tarde
esplêndida de domingo, o sol iluminando a varanda da frente, crianças
brincando, gritando e rindo embaixo na praça, o casal na sala gozando a
companhia do espelho. De repente a mulher, serena, alegre, reflexiva, deitada
na marquesa, olhando pela porta da varanda e torcendo um chumaço de cabelo com
o polegar e o indicador da mão direita, disse em voz calma, mais como se fosse
um pensamento que tivesse lhe escapado pela boca:
—
Não acha que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho?
O
homem, sempre atencioso, deitado no sofá, os pés descalços sobre uma almofada,
os joelhos dobrados, lendo o segundo volume do Corpo de Baile de Guimarães
Rosa, pousou-o aberto sobre o peito e olhou intrigado para a mulher.
—
Como é mesmo, filha?
—
Eu disse alguma coisa? — indagou a mulher, olhando-o intrigada.
—
Disse que estamos parecendo dois bobocas atrelados a este espelho. Aliás, não
disse; perguntou se eu não achava.
—
Foi, é? Ora essa! — Voltou a torcer a mecha de cabelo por um instante, calada.
— Bem, se eu disse, então é porque estava pensando.
Ele
pegou novamente o livro, mudou de idéia antes de localizar o ponto onde havia
parado. Pousou-o de novo no peito. A observação da mulher ficou interessando
mais.
—
Esse pensamento é novo ou já lhe ocorreu antes? — perguntou.
Como
não tinham segredos um para o outro, ela admitiu que dias antes no trabalho, ao
ouvir uma colega falar do fim de. de semana altamente relaxante que passara com
o marido e amigos em um hotel-fazenda no Vale do Paraíba, fizera uma comparação
e ficara em dúvida se eles dois estariam certos fechando-se tanto em casa e em
si mesmos por causa do espelho, como se o mundo lá fora não existisse; e se
indagara se isso não acabaria prejudicando-os de alguma maneira.
—
Bem, já que o assunto pulou a cerca, é porque chegou a hora. Então não vamos
continuar fazendo de conta que ele não existe. Eu também tenho me preocupado
com o espelho de uns dias para cá.
—
É mesmo? Como assim? — disse ela, ao mesmo tempo em que passava da posição de
semideitada para a de semi-sentada.
Um
dia, quando você estava na cozinha fazendo café e eu aqui conversando com Emer
e Zenaide, os dois sentados no sofá, olhei para eles para dizer qualquer coisa,
tive uma sensação esquisita. Emer me perguntara sobre meninos de rua, a matança
da Candelária. Quando dei minha opinião, aconteceu. Os que estavam no sofá eram
Emer e Zenaide. Os que eu via no espelho, só do ombro para cima, eram outros.
Esses aprovavam a matança. Não diziam isso em palavras, as palavras deles eram
as de Emer e Zenaide, diziam que tinha sido um horror, uma vergonha, uma
desumanidade; mas tudo soava falso. A opinião verdadeira estava nas imagens
refletidas. Fiquei horrorizado. Disfarcei, levantei, fui à varanda pretextando
ter ouvido qualquer coisa lá fora. Felizmente você apareceu logo com o café.
—
Me lembro que quando entrei com a bandeja você vinha da varanda. Só isso.
—
Então eles também não devem ter notado. Ainda bem. Mas fiquei transtornado.
Naquele instante o espelho mostrou-me a verdadeira alma deles.
Ela
olhou demoradamente para o espelho e disse: — Gostaria muito de pensar...
pensar não, ter certeza ... que você tivesse imaginado isso.
—
Eu também. Mas não dá para fraudar Foi real.
Não
falaram mais no assunto, mas pensaram muito, cada um por si. De tardinha
fizeram um lanche na sala de jantar, esforçando-se os dois para não falarem no
espelho nem olharem para ele. Depois ligaram a televisão, nada de interessante.
Que tal um cinema à noite? Consultaram o jornal, optaram por uma comédia
inglesa, "O Garçom Venturoso", de Peter Ustinov. Os ingleses são bons
em comédia, e Ustinov melhor ainda, lembra-se de "Vice-Versa"?
O
filme é a história de um garçom de Charlotte Street que encontra a seu lado num
banco do metrô uma bolsinha minúscula. Guarda-a no bolso para ver depois se
contém algum valor. Quando a abre em casa, vê que tem um diamante do tamanho de
ovo de codorna, com nota de venda de uma loja de Amsterdã. O preço, uma
fortuna. O filme todo é o desespero do garçom para encontrar um lugar seguro
onde esconder o diamante até poder dispor dele sem risco. Não tem experiência
em atividades clandestinas e não pode consultar ninguém para não levantar
suspeita. Não pode dividir o problema com a mulher porque ela tem coceira na
língua. Todo esconderijo que imagina logo lhe parece escancarado. Levanta-se no
meio da noite para mudar o diamante de lugar. Pensa engoli-lo para recuperá-lo
no dia seguinte, e assim ir fazendo dia após dia, mas na primeira se tentativa
quase morre engasgado, o raio do diamante bem podia ser um pouco menor.
O
homem vive sonolento, cochila no trabalho, o chefe o adverte. Finalmente o
pobre garçom conclui que não existe em toda Londres um lugar seguro para quem
não tem diamantes esconder um diamante do tamaninho de um ovo de codorna. E
resolve entregá-lo à polícia.
Em
vez de distraí-los, o filme agravou as preocupações inconfessáveis do casal. Na
mesma noite retiraram o espelho da parede, o que não foi difícil: bastou
retirar com torques as três escápulas do alto, içar o espelho das três
escápulas que o sustentavam embaixo, depois virá-lo de frente para a parede e
pousá-lo no chão atrás do sofá.
No
dia seguinte telefonaram para o belchior e fecharam negócio pela primeira
proposta, como tinham feito quando da compra. Mas continuaram usando espelhos,
ele para fazer a barba, ela para se pintar e pentear.
(O
conto acima foi extraído do livro "Objetos turbulentos", editora
Bertrand Brasil - Rio de Janeiro, 1997, pág. 9.)
Gostei deste conto. Ler algo que não tem capítulos pra mim, muitas vezes é um óasis. Assim rapidamente pude tambem intuir a significancia dos objetos, animais e pessoas na nossa vida, a ponto de serem os tais pilares da nossa felicidade. Um espelho,então prato feito prá refletir tudo que chamamos bom ou mal, bonito ou feio, por fora ou por dentro. Valeu muita nesta minha tarde de quinta feira bastante nebulosa!
ResponderExcluirInteressante, seria o espelho enfeitiçado? kkkkkk
ResponderExcluirGostei!
Gostei de ler. Muitas vezes ficamos tão apegados a algum objeto, ou a alguma pessoa, que deixamos de viver nossa vida, isso é uma espécie de escravização. Muito bom esse conto!
ResponderExcluirNossa ameii esse conto! muitoooo bom.. parabéns ao autor!
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