O INFERNO
DE UM ANJO
Romance-folhetim
Título original:
L’enfer d’un Ange
Henriette de Tremière/o inferno de um anjo
e revisado por Paulo Sena
Rev. G.H.
BIBLIOTECA GRANDE HOTEL
Capítulo
XXVIII
O
DEMÔNIO DE SUA VIDA
Fernando
abraçou Denise, sem dizer palavra. Fitava a marquesa Renata, sua ex-esposa, que
imediatamente havia reconhecido, com a mesma expressão com que olharia para um
réptil venenoso, um animal asqueroso. Não lhe parecia possível que aquela que
lhe arruinara a existência, que o traíra, que o atormentara a ponto de fazê-lo
sentir o desejo de matar-se, tivesse a ousadia de vir novamente perturbar a paz
daquela casa!
Também
Renata, que não esperava a entrada imprevista daquele que fora seu marido, se
limitava a olhá-lo duramente, como se desejasse hipnotizá-lo, para impedir que
ele avançasse sobre si, fazendo-a pagar com a vida todo o mal que lhe havia
feito.
Por
felicidade, porém, o conde Fernando, ainda uma vez, soube dominar-se, conseguiu
manter o sangue-frio, graças à severa educação que havia recebido e à sua inata
nobreza de alma.
Libertando-se
suavemente do abraço da hipócrita Denise, meteu a mão no bolso, tirou um
punhado de notas e estendeu-o desprezivelmente à marquesa:
-
Tome! Imagino que seja a falta de dinheiro que a trouxe a esta casa. E agora,
livre-me da sua presença!
A
marquesa Renata deu uma risada estridente e cínica e, sem mesmo fitar o marido,
agarrou o pacote de notas e o foi logo enfiando na bolsa.
-
Obrigada! - disse irônica. - Estava mesmo "dura", enquanto você vive
aqui na fartura. É justo que você divida o que tem com a que foi sua esposa,
não acha?
-
Renata! - gritou Fernando, cerrando, os punhos convulsivamente. - Não abuse da
minha paciência!
-
O mesmo conselho lhe dou, conde Fernando, não abuse da minha!... - respondeu a
mulher. - Não se vanglorie demais da sua fortuna, não exiba excessivamente suas
possibilidades financeiras! Tenho-o na mão, meu caro, e poderei fazer com que
se derretam como a neve sua riqueza, a sua arrogância, assim que o desejar! E
agora me vou, mas por minha espontânea vontade! Agradeça também à presença de
sua adorada filha! Agradeça e, ao mesmo tempo, tenha cuidado, porque minha
vingança, que será terrível, poderá vir de um momento para outro! Adeusinho!
E
a maléfica marquesa, com seu andar felino, saiu da sala verde, como uma visão
demoníaca.
Quando
o eco de seus passos se perdeu no corredor, Denise, num instintivo desejo de
desafogar sua raiva, sua ira, de procurar conforto junto a alguém que, ao menos
em parte a compreendesse, abandonou-se novamente entre os braços do conde
Fernando.
Um
frêmito nervoso a sacudia e suas mãos se apegavam aos braços do conde, quase
histericamente.
-
Oh! papai, que mulher infernal! - exclamou, entre lágrimas, mas não lágrimas de
dor, e sim de raiva... Desejei matá-la, para que parasse de falar!
-
Sossegue querida, não chore. Sabe que é para mim a maior alegria ver o seu
rostinho sorridente e feliz. Não vale a pena sofrer por causa dessa criatura
perversa. Se soubesse toda a estória dela, ter-lhe-ia ódio e desprezo...
Denise
conhecia muitíssimo bem a estória da marquesa, mas, erguendo o rosto para o
conde, perguntou, ingenuamente:
-
Que foi que ela fez?
Fernando
sacudiu tristemente a cabeça, ao tempo em que a acariciava ternamente:
-
Não quero perturbá-la, num dia como o de hoje, com a narração da horrível
verdade. Mais tarde, com tempo, você saberá tudo... E talvez ainda seja cedo.
Compreenderá então como aquela criatura abjeta foi capaz de transformar minha
vida num inferno, até o dia em que tornei a encontrar você, minha filha. Agora,
não chore mais, faça isso por mim, peço-lhe.
A
jovem logo obedeceu, enxugando as lágrimas com um lencinho de seda.
Pouco
a pouco se convencia de que nem tudo estava perdido, as palavras do conde
tranquilizavam-na e pensava que talvez, usando toda a sua habilidade,
conseguiria enganá-lo, envolvendo-o de tal modo que ele não acreditasse numa só
palavra, caso a mãe, algum dia a denunciasse.
-
Perdoe se não pude conter o choro, paizinho - murmurou. - Mas aquela mulher me
disse coisas tão horríveis, que por nada deste mundo terei coragem de
repeti-las!
A
fingida atitude da mocinha voltou a despertar a ira do conde Fernando contra
Renata, afastando, ao mesmo tempo, de Denise, qualquer receio:
-
Não sei que mentiras possa lhe ter contado aquela víbora, mas, seja lá o que
for, juro que nada de mau fiz. Jamais, voluntariamente, fiz coisa alguma, da
qual me tivesse envergonhado. Sim, errar é humano e se me aconteceu errar,
alguma vez, sempre me arrependi do erro, quando o reconheci...
O
conde queria referir-se a tudo o que acontecera entre ele e Marta Aubert, a mãe
de Maria "Flor de Amor", a pobre louca, mas Denise o interrompeu, protestando:
-
Não é preciso que me fale do seu passado, papai. Sei muito bem que o senhor é o
homem mais correto e decente do mundo. O que me preocupa, o que me aperta o
coração, é que aquela mulher, sobre a qual tenho ouvido falar sempre de modo
muito vago, possa arrebatar-me o seu amor e afastar-me de seu convívio... A
arma da calúnia é terrível, infelizmente, e pode ser usada de muitas maneiras.
Por isso, tenho receio de ser eu a vítima e não o senhor... Não ouviu sua
ameaça? Ah! Nunca poderei esquecer o tom de voz com que pronunciava aquilo!
Tenho quase a impressão de que não poderei me casar, depois do que aconteceu...
-
Denise, você delira? O veneno de Renata começa a agir em você, então? Seu
casamento está acertado, tudo está pronto. Por que não se deverá celebrar?
-
Tenho a impressão de estar maculada, moralmente corrompida pela proximidade em
que estive dela...
-
Meu benzinho... Você é pura como um lírio, o mal não lhe pode sequer aflorar.
Os acontecimentos terão seu curso normal e, quando estiver casada, as nuvens se
dissiparão do seu horizonte, verá.
O
conde Fernando não imaginava o quanto estava longe da realidade, mas seu amor
paternal era tal que lhe tolhia quase a faculdade de raciocinar. E era
justamente isso o que desejava a fingida Denise, que logo se apressou a
exclamar, olhando-o como quem implora:
-
Então, papai, se o senhor quer mesmo que eu despose Luís Paulo, prometa-me que
não dará ouvidos às mentiras e ameaças daquela mulher, se ela aparecer de
novo!... Promete-me que se ela lhe escrever, ou vier aqui, procurar por
qualquer meio de comunicar-se, o senhor não a ouvirá, não lhe dará crédito! Não
poderei viver tranquila, se não for assim... Não poderei...
O
conde lhe passou carinhosamente a mão pelos cabelos.
-
É um anjo, Denise, e prometo tudo o que pede, desde que a veja contente. Não creio,
porém, que Renata, apesar de sua ameaça, tenha a coragem de voltar à carga. Por
agora, porém, não vamos mais pensar nela. Já está ficando tarde e os convidados
nos esperam. Volte ao seu quarto para retocar seu vestido e ajeitar este
rostinho, Luís Paulo e eu iremos ao seu encontro lá, para buscá-la e irmos para
a igreja. Vá, ande, corra para a felicidade que a espera! Nada se antepõe entre
você e o homem que ama. Daqui a pouco o sacerdote, diante do altar de Deus, os
unirá indissoluvelmente para toda a vida.
Depois
que a mocinha saiu, leve como uma libélula, da sala verde, o conde Fernando,
num gesto quase maquinal, passou a mão sobre os olhos fechados.
-
Meu Deus! Se me pudesse livrar do demônio que me persegue! - disse em voz
baixa. - Renata teve a coragem, a audácia de penetrar em minha casa e neste dia
de júbilo... Sórdida criatura! Merecia que eu... Interrompeu-se porque a porta
se abrira, muito discretamente, para deixar entrar Luís Paulo.
Também
ele estava extremamente elegante, mas a casaca negra fazia ressaltar bastante a
palidez de seu rosto. Tinha o ar de quem se movimenta num sonho, sem saber
direito o que está fazendo. Parecia estar preparado mais para uma cerimônia
fúnebre, que para um casamento. Ao avistar o futuro genro, vindo ao seu
encontro, o conde Fernando procurou sorrir. Também ele não se encontrava nas
suas melhores condições físicas e morais e, para disfarçar, abriu a cigarreira
de ouro e ofereceu um cigarro ao rapaz.
Sacudindo
levemente a mão, em sinal de recusa, o jovem disse, com voz rouca:
-
Os convidados começam a perguntar-se o que está acontecendo... Já estão fazendo
conjeturas sobre o motivo deste atraso.
-
Nada... Nada de importância, filho. Sabe como são as mulheres... Nessas ocasiões,
nunca se julgam suficientemente belas, e Denise, naturalmente está caprichando,
receosa de que você não a encontre sumamente linda...
-
Ah! Compreendo...
O
tom de voz de Luís Paulo era apático, desinteressado.
O
conde Fernando lhe tomou a mão, com afeto. E logo exclamou:
-
Mas, rapaz, você está gelado! Não se sente bem, por acaso? Sim, reparando bem,
está de uma palidez que assusta! Tudo isso é emoção?
-
Estou bem, asseguro-lhe... Talvez ainda seja efeito da morte de meu pai,
daquela maneira...
-
Mas ele precisamente desejava que o casamento de vocês dois fosse realizado, e
o mais breve possível, bem sabe...
-
Sim, lembro-me disso, tem razão. Deve então ser por causa do que me aconteceu
há dias, na cidade, em frente ao hotel. Dois homens dispararam contra mim, como
o senhor já soube. E se não conseguiram matar-me, deveu-se a providencial
intervenção de uma jovem que, desde a calçada me fez refugiar no interior da
carruagem. As balas passaram pelas janelas sem ferir-me. Foi apenas um susto
terrível... Tenho quebrado a cabeça inutilmente para descobrir o motivo do
atentado, sem compreender por que aqueles dois homens me esperavam e tentaram
abater-me.
-
Verdadeiramente é um caso extraordinário, pois você não tem inimigos. É uma
pena que a polícia não conseguisse apanhá-los! - comentou o conde Fernando.
-
Afinal, foi bem melhor assim. Quanto aborrecimento eu teria tido! Ir à policia,
ser ouvido, fazer o reconhecimento, os interrogatórios, o confronto com os
acusados... Uma porção de formalidades! A única coisa que sinto é não ter
podido agradecer à moça que, tão a tempo, interveio e conseguiu salvar-me a
vida – disse Luís Paulo. E acrescentou em seguida: - Conde... Queria pedir-lhe
um favor...
-
Diga o que quer, meu filho...
-
Gostaria que, antes de ser iniciada a cerimônia, antes mesmo dos preliminares
desta, de poder falar por alguns minutos a sós com Denise.
-
Seu pedido me parece estranho! - não pôde deixar de dizer o conde, talvez
surpreso.
-
Admito-o, mas... Duas criaturas que estão em vias de unir-se para toda a vida,
é justo que falem a sós por uns momentos, antes de darem o grande passo... Além
disso, desejo esclarecer um pequeno detalhe com Denise, antes de ir para a
igreja...
O
constrangimento do rapaz era visível e, naturalmente, o conde o estranhou.
-
Não compreendo este seu desejo - observou. - Estava crente de que você e minha
filha já se tivessem dito tudo quanto era necessário, visto como juntos tomaram
a decisão de se unirem em matrimônio. Não obstante, não quero deixar de atender
ao primeiro pedido que me faz. Vamos, pois, juntos, aos aposentos de Denise,
onde ela deve estar à nossa espera e, antes de descer aos salões, onde estão os
convidados, eu me afastarei um instante, para vocês poderem falar. Está bem?
A
condescendência do conde aliviou um pouco a tensão de espírito de Luís Paulo
que, apertando mais uma vez a mão do futuro sogro, disse, de modo quase
inteligível:
-
Muito obrigado... O senhor é o melhor homem que conheço. Aconteça o que
acontecer, não esquecerei isto.
Tendo
voltado aos seus aposentos, Denise, a primeira coisa que fez, vaidosa como era,
foi olhar-se no grande espelho.
A
imagem que ali viu refletida não deixou de assustá-la: suas faces,
habitualmente rosadas, estavam agora cadavéricas.
Até
seus lábios, que eram rubros e atraentes, estavam sem aquele atrativo.
Maria
"Flor de Amor" lhe viera solicitamente ao encontro, lançando também
olhares de estranheza ao belo vestido que, agora, parecia ter perdido um tanto
da original leveza.
-
Como demorou, condessinha... - disse.
-
Que criatura pavorosa, a tal mulher! - exclamou Denise, procurando disfarçar
sua perturbação. - Não acabava mais de felicitar-me, de congratular-se, de
desejar tudo quanto há de bom para meu futuro! Se continuasse mais um pouco,
não haveria casamento por falta de noiva! Ponha-me o véu, por favor...
Enquanto
Maria "Flor de Amor" obedecia, Denise deu mais um giro com o corpo,
em frente ao espelho. À medida que o tempo passava, sentia que a calma lhe
voltava, assim como seu habitual sangue-frio.
Maria
"Flor de Amor" ia e vinha, atarefada, e pela primeira vez Denise
pousou nela os olhos com certo interesse. Reparava, de súbito, que, apesar do
vestido muito simples que a outra usava, sua beleza extraordinária era capaz de
despertar atenção.
O
despeito e a inveja, sempre latentes na alma da filha de Renata, que receava
sempre ser ofuscada ao lado de outras moças, se agitaram nela imediatamente.
Virando-se,
então, bruscamente para Maria "Flor de Amor", ordenou:
-
Prefiro que meu pai e meu noivo me encontrem sozinha, quando vierem. Se deseja
conhecer de vista o homem com quem vou me casar, passe para o meu quarto e
mantenha a porta entreaberta. Está bem?
-
Como queira, condessinha...
-
Agora não preciso mais de você. Vá para lá e espere.
Quando
eu tiver saído, se quiser, poderá tomar lugar numa das carruagens do cortejo
para assistir à cerimônia, na igreja.
-
Obrigada, condessinha - respondeu Maria "Flor de Amor", antes de se
retirar. Depois murmurou, ao mesmo tempo em que uma sombra de tristeza lhe
velava o olhar:
-
Ficarei contente de assistir ao espetáculo da sua felicidade...
Mal
a jovem entrara no quarto de dormir de Denise e a porta do salãozinho
particular se abriu, penetrando por ela o conde Fernando e Luís Paulo, este
visivelmente abatido.
-
Minha filha - disse Fernando, solenemente - aqui está aquele que será o
companheiro de sua vida e com o qual, a partir deste momento, compartilhará
para sempre alegrias e dores. Espero ardentemente que o amor que os une seja
eterno e, por minha parte, os abençôo.
Calou-se,
um pouco emocionado com as próprias palavras, enquanto Luís Paulo se limitava a
olhar fixamente Denise. Enquanto isso Maria "Flor de Amor", no
aposento ao lado, esperava quieta, sentada numa poltrona. Ouvindo, porém, o
ruído das vozes, impelida por natural curiosidade, decidiu fazer o que Denise
lhe sugerira. Pôs-se em pé, atravessou o quarto sem fazer ruído e, o mais
silenciosamente que pôde, foi afastando uma das bandas da porta, abrindo uma
estreita fenda, por onde pudesse ver sem ser vista. E então encostou o rosto na
abertura e lançou uma espiada para o salão.
O
que viu lhe causou um tremendo aperto no coração. Parecia que duas mãos
poderosas lhe tivessem comprimido a garganta, tentando sufocá-la. Agarrou-se
fortemente à madeira, procurando manter-se em pé, mas as forças lhe faltaram e
tombou ao solo pesadamente, como fulminada!
Pobre Maria "Flor de Amor", uma desilusão atrás da outra! Antes não tivesse ido trabalhar pra essa falsa condessa! Quanto sofrimento ainda terá pela frente!
ResponderExcluirMais desilusão, haja lenço para tanto drama. Mas no final, tudo dá certo. É folhetim, é só esperar...
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