quarta-feira, 8 de setembro de 2010

PAI HERÓI - CAPÍTULO III


A partir daí, o que ocorreu foi um chorrilho de equívocos, comédia de erros a envolvê-los, irônica e fatidicamente, pois o que se poderia esperar de pessoas que, embora se gostando, tinham chegado a tamanho grau de afastamento, de agressividade?
César ainda tentou, mesmo humilhando-se, contornar a situação.
Procurou novos contatos com Carina, um reatamento. Queria ao menos dialogar, naquele momento, o que era imprescindível. Mas ela dava nova interpretação a tudo o que ele fazia; era-lhe impossível supô-lo despido de ocultas intenções. Julgava-o um bruxo, o bruxo que fora no passado, outra vez a querer manobrá-la.
As coisas então se precipitaram. Ela apresentou o pedido de demissão, que César lhe havia entregue, à diretoria, que o aceitou. Com isso, César se viu compelido a afastar-se da companhia. Sua amante francesa reapareceu (na mais pura candidez, foi procurá-lo, pretendia instalar-se no Rio com uma loja de antigüidades, necessitava de sua fiança para alugar um imóvel) e Carina surpreendeu os dois conversando. Este fato foi o estopim que a levou à explosão final: procurar um advogado, propor a separação, o divórcio.

O perigo das menininhas

Genésio tinha uma filha, Lena, que namorava Cirilo, o filho de Baldaracci. Volúvel, doidivanas, Lena começou a paquerar André. Já cheio de problemas e não querendo se envolver em outro, ele a evitava, deliberada e sistematicamente. Isso, em vez de fazê-la desistir, começou a irritá-la; ela, com seu orgulho ferido, insistindo mais e mais. Procurava ficar a sós com André, ia a seu quarto, de noite, às escondidas, tentá-lo, Como ninguém é de ferro, andaram trocando uns beijinhos, mas sem passar disso. André não se sentia bem por saber estar enganando seu irmão.
Cirilo, apaixonado, percebendo a súbita frieza de Lena, em vez de simplesmente tentar esquecê-la, resolveu ir além, procurando quebrar o gelo que a envolvia. Propôs o noivado, para marcar logo a data do casamento. Lena, querendo provocar André, aceitou. Mas, já que nem assim ele manifestou qualquer reação, não indo além de carícias que não a contentavam, sentia-se cada vez mais rejeitada. Como vingança resolveu dizer a Cirilo que o irmão a perseguia, importunava-a com inaceitáveis propostas. Furioso, Cirilo ameaçou André, e, astuto, resolveu comprovar a verdade do que Lena dizia, sua fidelidade. Certa noite, escondido, pôs-se a vigiar o quarto de André. Viu então quando Lena entrou nele. Trancou os dois lá dentro, acordou Genésio, levou-o para atestar a indignidade da filha. Lena se defendeu da única maneira possível - jogou toda a culpa sobre André. Genésio, fora de si, o agrediu, expulsou-o de sua casa e exigiu que ele sumisse de Nilópolis, sob pena de matá-lo. Cirilo, não satisfeito, pediu a ajuda do pai, que resolveu acabar de vez com André. Embora evitando qualquer espécie de publicidade ao "ultraje da honra" sofrido pelo filho, instruiu seus capangas para darem uma lição (a definitiva) em André.
Agora nada mais restava a André senão fazer o que dele tinham esperado, desde que chegara. Sumir dali, desaparecer. Isso representaria para todos a reconquista da paz, da bem-aventurança que ele viera perturbar. Ainda assim, desejava falar com a mãe. Se queriam tanto que partisse, iria embora, mas precisava provar, ao menos a ela, sua pureza, a isenção de culpas. Não conseguiu vê-la. Recebeu de Gilda o seguinte bilhete:
Eu lhe peço, por caridade, que me poupe mais sofrimentos. Vá embora deste lugar. É melhor para mim, para você, para todos. Eu não agüento mais.
Inteiramente desamparado, André perambulava pelas ruas, à mercê do que pudesse acontecer. E não demorou muito. Pepo, dentro de um carro, em companhia de um sujeito chamado Curió, chamou­o. Iam para o Leblon e André se propôs a.ir com eles. Aceitaram, animados. André entrou no carro, seguiram viagem. Só então ele ficou sabendo que os dois pretendiam assaltar um supermercado. Pediu para saltar, não permitiram. Agora ele já conhecia os planos, teria de ajudá-los, não deixá-los no meio do caminho. André insistiu, mas Curió, o mais violento, encostou-lhe um revólver ao corpo, exigindo sua colaboração. E explicou no que ela consistiria: André ficaria no carro, garantindo a cobertura e a fuga, enquanto saqueavam o supermercado. Para infelicidade dos três, porém, tudo deu errado. Foram surpreendidos pela polícia; Curió morto, Pepo fugindo para um lado, André para o outro, a polícia e populares atrás deles.
Correndo desesperado pela rua, André reconheceu a fachada de um prédio; entrou nele. Ocorre que era o prédio onde Carina morava, e ele sabia disso. É que, algum tempo atrás, padre Felício viera de Paço Alegre, chamado por César, para tentar demover Carina do pedido de divórcio. Aproveitara e fora visitar André. Na volta, o rapaz o trouxera à cidade, no carro de Genésio. Como o padre estava hospedado exatamente no apartamento de Carina, André ficara conhecendo o lugar onde agora procurava se homiziar, salvando a vida da sanha dos populares e da perseguição da polícia.

A deusa da morte

O pedido de divórcio de Carina e César foi homologado. Casados sob o regime de separação de bens, a César nada coube. Ou melhor, coube-lhe o direito de ver a filha, Ângela, em dia e hora determinados pelo juiz. Livre do peso de um casamento que a sufocava (embora a liberdade, de certa maneira, também lhe pesasse), Carina entregou-se de corpo e alma ao balé, iniciando uma tournée por vários Estados do Brasil. Norah, sua mãe, aproveitou a ausência da filha para viajar à Europa. E Ângela, com quem ficaria? Com Irene - mulher de Reginaldo, tio de Carina - e com a babá, Olga. Reginaldo, contudo, a pedido da mãe, Januária, viajou para a fazenda, em Paço Alegre. Como demorasse a voltar, Irene foi para lá também. Ângela ficou sozinha com a babá. Isso deu a César, amargurado com a separação, a oportunidade que buscava para se vingar de Carina. Subornou Olga, mediante considerável quantia, para que desaparecesse. Depois trancou Ângela no apartamento, e interpretou a pantomima de que a menina tinha sido abandonada. Teve o cuidado de dar a maior publicidade possível ao fato; os bombeiros precisaram arrombar a porta do apartamento na presença dos repórteres. Carina foi apresentada no torpe papel de mãe que prefere realizar-se profissionalmente, em detrimento da própria filha.
Alegando abandono material, César entrou com uma ação de posse e guarda da garota. E ganhou. Carina via-se, assim, privada do convívio de Ângela, só podendo encontrá-la (como antes acontecera com César) em dia e hora determinados pelo juiz. Foi como se o mundo desabasse; ela se sentia vítima de uma injustiça que não podia aceitar. Pois foi nesse estado de espírito que, da sacada do apartamento, viu lá embaixo, na rua, o inusitado movimento de policiais, ouviu as sirenes, o cerco que se fazia ao edifício. Voltou-se e viu mais ainda: em um dos cantos do terraço, um• homem, agachado, apontava-lhe uma arma. Surpreendentemente, não se chocou. Protegeu-o até, quando a polícia bateu à porta. Permitiu que dormisse ali; em segurança. No dia seguinte, acordou-o, cedo, e só então André pôde compreender a razão para aquele comportamento tão estranho. A vida não fazia mais qualquer sentido para ela. Não tinha, porém, coragem de se matar. Será que ele, como marginal, assaltante, e em troca de enorme quantia, não poderia fazer aquilo, tirá-la em definitivo de um mundo que não mais podia suportar? A única condição que impunha era a de que não ficasse sabendo nem o momento nem a forma de sua eliminação; isso seria uma atribuição exclusiva dele.
Atônito, André a imaginou inteiramente louca. Mas mentiu, disse que aceitava a incumbência (naquele momento pensou no que poderia fazer em benefício da lembrança do pai, com a destruição de Baldaracci, usando o dinheiro que ela lhe oferecia). Isso, embora a amasse e a visse tão desesperada, sem a menor lembrança de quem era ele, confundindo-o com um marginal qualquer. Mas continuou a desempenhar o papel que ela dele esperava, seu carrasco, seu algoz. No dia seguinte, ela o levou para sua casa na praia. Era um local isolado, perfeito para o crime. Carina criava todas as condições para lhe proporcionar o momento ideal para a mórbida tarefa; morrer para ela já era inquestionável realidade.
Era estranha, no entanto, a convivência de carrasco e vítima; todos os limites haviam sido atingidos, nada existia além deles. Agiam como antípodas, mas foi impossível, em determinado momento, deixar de ouvir o oposto da morte falar-lhes, o amor surgindo, para ela como uma despedida, para ele como o início de algo com o qual sempre sonhara, desde o primeiro momento em que a vira. E então a ele se entregaram, sem outra preocupação a não ser vivê-lo naquele instante, o mais importante, o decisivo.

A deusa da vida

André estava sentado à mesa, esperando pela comida. Carina trouxe-a numa bandeja, numa espécie de arranjo, com uma flor. Amorosamente espantado, ele exclamou:
- O que é isso? Está me acostumando muito mal. Ela o serviu, carinhosa, pediu:
- Coma. E me conte mais de sua vida.
- Já falei tanto ontem à noite.
- Não tem importância. Fale mais. Estou interessada. Você tem sofrido muito. Mas não parece.
Ele sorriu:
- É que eu não sou de esquentar a cabeça. Estou sempre chutando pro alto. Mando ver. Tiro tudo de letra.
- Traduza, porque não entendi nada - pediu ela.
Ele retrucou, sério:
- Tenho loucura por uma única coisa: viver. Acho que tudo vale a pena, porque estou vivo.
Ela foi até a janela, olhou para fora:
- Está um dia muito bonito. Não queria morrer num dia assim.
Ele se ergueu, abraçou-a.
- Você ontem falou sobre sua mãe. Continue - disse ela.
- Eu te contei até o momento em que a Lena, a garota de meu irmão, me enrolou.
- É. Até aí. Agora quero saber como você chegou até o ponto em que se encontrou com seu amigo Pepo e como foi que se envolveu no assalto.
- Não tomei parte. Não sou um deles.
- Mas está sendo procurado pela polícia.
Ele passou a mão pelos cabelos, num gesto nervoso:
- Se souberem que eu estava naquele carro, estou perdido. A não ser que o Pepo diga a verdade.
- Como chegou a essa situação? Foi conseqüência do que sofreu, por ter sido rejeitado por sua mãe?
- Não, não é conseqüência de nada. Eu fui burro por esperar demais dela.
- Se ela o procurar agora, o que vai fazer?
- Nada. Absolutamente nada.
Ela estranhou:
- Por que nada? Me explique.
- Eu resolvi uma coisa dentro de mim.
- Relativa a quem? A seu pai?
- Vou limpar o nome dele a qualquer preço.
- Mas ela, sua mãe... você não me respondeu.
- Risquei essa mulher da minha vida.
Ela novamente estranhou:
- Riscou? Riscou, como? .
- Pra mim, ela não existe mais, só isso. Entendeu?
- Não. Não sei como alguém pode riscar uma pessoa da vida. Gostaria de saber como é isso. .
- É uma maneira da gente dizer, porque, quando a gente está querendo ignorar, riscar uma pessoa, é porque ela está incomodando a gente bastante. Estou nessa ainda. Mas, ignorando ela, acho que vou acabar me esquecendo de que um dia vim ao mundo gerado por uma mulher que se chama Gilda. Entendeu agora? - perguntou André, já visivelmente perturbado com aquele assunto.
Ela fez que sim, ele a beijou e disse:
- Você não me perguntou o mais importante: como eu tinha certeza de que você um dia ia ser minha.
- Você não me esqueceu?
- Nunca, nem um dia. Tenho loucura por você. Te amo de verdade.
Encararam-se, depois se beijaram, enlevados.

O dilema

Gilda voltou-se para o marido, nervosa:
- Nuno, você está me enganando, me fazendo de boba.
- Io? O que tem contra mim?
- A filha de Ana Preta. Você é o pai!
Ele tentou desconversar, ela insistiu, ele perguntou:
- Quem falou? Quem?
- O pai de Ana, seu Garcia. Contou tudo, numa bebedeira, para quem quisesse ouvir.
- E você acreditou, Gilda?! Amore mio! Um homem bêbado não tem palavra.
Ela gritou:
- Diga a verdade, Nuno. Eu quero a verdade! Não me faça de boba. Estou cansada. .
- Cansado estou io. É calúnia.
Ela pegou o travesseiro, a roupa de cama; a camisola. Ele estranhou:
- O que é isso? O que vai fazer?
- Vou dormir no outro quarto. E não volto a dormir com você até ter certeza de que você fez o que eu exijo.
- Ma o que, Gilda? O que você exige?
- Eu quero que você tire o Flor de Lys da Ana Preta. Exijo que você afaste essa mulher daqui de Nilópolis.
- Absurdo, Gilda.
- Como você me obrigou a afastar meu filho.
- Você está abusando. Io non sou um moleque que devo obedecer ordens.
- Moleque você foi comigo até agora.
Ele se exaltou:
- Maledetta a hora em que me casei com você.
- Eu é quem devia dizer isso. Dediquei minha vida a você e você está fazendo um papel pior que o meu primeiro marido.
- Talvez você preferisse estar vivendo com um bandido.
- Talvez preferisse mesmo - respondeu ela.
- Você está me ofendendo.
- Nuno, a filha de Ana Preta tem quinze anos. Quinze anos. Nós já estávamos casados bem antes disso. Você vai me pagar ou eu não sou mais eu.
Furiosa, saiu, batendo a porta.
No dia seguinte, em imenso dilema, Nuno desabafou com o irmão, Rafael:
- Imagina que Gilda descobriu tudo, que a Jenny é minha filha.
- Madonna, e agora?
- Agora, quer me obrigar a afastar Ana Preta daqui, tirando dela o Flor de Lys, e mandando ela pra longe.
- O Flor de Lys é a alma da Ana Preta.
- E a Ana Preta é a minha alma. O que é que eu faço?
- Neste caso você tem de romper ou com Gilda ou com Ana Preta de uma vez - respondeu Rafael.
- Romper com a mãe dos meus filhos? Está louco?
- Então tem de fazer o que Gilda quer.
- Ecco, tenho de fazer. Ma come? E a coragem?
- Meu irmão, você está no mato sem cachorro. Eu não queria estar no seu lugar.
Nuno abriu os braços, patético:
- Tudo, tudo se volta contra mim. E me diga: eu mereço? Ahn? Mereço? Um homem como eu que só faz o bem... só faz o bem...

DEDICAMOS ESSE CAPÍTULO À BISCOITINHA KELY, QUE TEM CONTRIBUÍDO MUITO COM O BLOG E ESTÁ IRRITADA COM O COMPORTAMENTO DO CÉSAR. TEMOS CERTEZA QUE ELA E AS OUTRAS MENINAS VÃO ADORAR A CENA DE AMOR ENTRE ANDRÉ E CARINA.

3 comentários:

  1. Isto é que é novela! Li numa tacada só os 3 capítulos. Assisti esta novela, mas não me lembrava mais dos detalhes. Está sendo muito bom recordar!

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  2. Estou Adorando esse romance, a parte da deusa da vida foi emocionante, principalmente a declaração de amor de André para Carina.
    Obrigada pela Homenagem dedicando este capitulo a mim. Beijos!

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  3. Estou meio atrasada... mas valeu a pena ler o capítulo com calma!! Que reviravolta na vida de Carina! Que momento este pra se encontrar com André! Gostei bastante!

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