quarta-feira, 25 de agosto de 2010

PAI HERÓI - CAPÍTULO I


Há alguns anos, em Nilópolis, na Baixada Fluminense, viveu um homem chamado Malta Cajarana. Ambicioso, lutou para subir na vida com as armas de que dispunha: valentia, audácia, ausência de escrúpulos. Armas tão sabiamente exploradas que ele logo se tornou conhecido. Mais que isso: tomou-se respeitado e temido. Temido a tal ponto que o simples pronunciar de seu nome causava medo nos mais fortes e pânico nos mais fracos.
Mas, se tudo tem um preço na vida, Malta Cajarana pagou muito alto por ter, a seu modo, vencido. Mesmo para um homem como ele, havia limites; limites que, se ultrapassados, constituiriam fatal armadilha. Talvez confiando demais em seu poderio, ele se tomou responsável pela morte do vigário do lugar, frei Nicolau. Não contava, claro, com a reação do povo. E ela foi terrível: a população, enfurecida, talvez levada por uma espécie qualquer de autopunição, linchou aquele que a atemorizara durante tanto tempo.
Malta Cajarana terminou assim seus dias, como se esse final tão trágico viesse apenas coroar uma existência toda ela voltada para a própria tragédia.
Mas o inusitado é que ele, morto, passou a existir muito mais do que vivo, pois de homem, transformou-se em mito; sua vida e suas façanhas contadas e recontadas por aquele mesmo povo que dele se livrara, como se sua memória fosse agora algo imprescindível, imorredouro. E havia até o sobrenatural para corroborar tal convicção: todo ano, no dia da morte de frei Nicolau e no mesmo local onde fora assassinado por Cajarana, uma flor nascia. Durava exatamente três dias, nunca mais, nem menos, e o povo formava romaria para vê-la e pedir uma graça, já que aquele era o inconteste sinal de que o morto se tomara santo.

O estigma paterno (I)

Malta Cajarana casara-se com uma mulher chamada Gilda. Com ela teve um filho, a quem deu o nome de André. Só que esse filho não conheceu o pai nem foi criado pela mãe. Ainda muito novo, foi entregue por Gilda ao avô paterno, que o levou para Paço Alegre, cidadezinha do interior de Minas Gerais. Lá o garoto cresceu, educado pelo avô. Tinha o gênio dócil, passivo; em nada lembrando o pai. Aliás, tinha a mais pura impressão a respeito da figura paterna, pois o avô lhe transmitia histórias que diferiam fundamentalmente da realidade. Enfim, para André, o pai tinha sido um homem normal, honesto e trabalhador. Uma única questão o incomodava: se era assim, por que a mãe o abandonara aos cuidados do avô, nunca o procurara, nem tampouco mandara notícias? Na verdade, tal fato amargurava a vida de André, fazia-o diferente dos outros garotos, criados em meio a uma família, com o carinho de pais e mães.
André, no entanto, até certo ponto se conformava; a presença do avô, o amor que ele transmitia eram-lhe suficientes. As coisas permaneceram assim até o dia em que o avô veio a faltar. O que fazer agora, sozinho no mundo, numa pequena cidade do interior? Não era melhor ir para o Rio, procurar a mãe, obter dela o apoio de que tanto necessitava naquele momento?
Ingênuo, sem ter a menor idéia do que o esperava, embarcou para o Rio.

O poderoso chefão

Gilda havia se casado novamente, com um italiano, Nuno Baldaracci. Rico, poderoso, envolvido em negócios que iam desde indústrias a hotéis, Nuno era sinistra mistura de mafioso e contraventor da Baixada, a honradez de seus negócios servindo apenas de fachada para encobrir atividades bem menos lícitas, sórdidas mesmo. Aliás, todas as suas atitudes eram pautadas por semelhante contradição, a aparência moralista a disfarçar a mais impudente imoralidade. Nuno sabia, evidentemente, da existência de André. E sabia também de outra coisa, bastante importante: Gilda, ao fazer o inventário de Malta Cajarana, tinha omitido o nome do filho, entrando sozinha na posse de todos os bens, como se André não existisse. Estaria, portanto, em péssima situação, se o rapaz resolvesse reclamar seus direitos na Justiça. Além do mais, tinha outros três filhos, que também seriam prejudicados, caso isso acontecesse.
Acrescente-se que havia verdadeiro pânico, em Nilópolis, por parte dos linchadores, acerca da presença do filho de Malta Cajarana, pois ele, com certeza puxado ao pai, tentaria vingar-lhe a morte.
Por fim, havia também outro tipo de pessoa, como Ana Preta, dona do Cabaré Flor de Lys, que parecia saber muito mais coisas a respeito da morte de Malta Cajarana e das atividades de Nuno Baldaracci do que deixava transparecer.

O estigma paterno (II)

Foi, portanto, com incrível hostilidade que André se viu recebi em Nilópolis. Mas nem toda a agressividade do mundo poderia ser comparada ao choque que o tomou por conhecer detalhes da vida e damorte do pai. Por que o avô lhe mentira? Ou será que não mentira? Onde estaria a verdade, afinal? Não sabia, o que o deixava inteiramente desorientado. Mesmo em meio a tudo aquilo, porém, algumas coisas boas aconteceram; conhecer Ana Preta foi a melhor delas. Ana se mostrou compreensiva, humana, amparando-o no momento em que ele mais necessitava de apoio. E foi ela também quem o encorajou o suficiente para vencer as barreiras que teimavam em erigir, a fim de que não visse a mãe. É bastante elucidativo reproduzir o diálogo que tiveram ao se encontrar:
- Então, o que veio fazer aqui agora, André? - perguntou ela, a emoção a lhe velar a voz.
- Meu avô morreu e eu fiquei sem saber que rumo tomar. Então, pensei: vou pro Rio conhecer minha mãe, saber do meu pai. - Seu pai ... seu pai ... ah, seu pai!
- Estou sabendo tudo agora. Eu nem sonhava, não passava pela minha cabeça que ele foi o que foi. Meu avô me dizia tudo ao contrário. A senhora imagina o choque que eu tive quando fui sabendo das coisas.
Ela fez um gesto para que ele se calasse:
- Não imagina como você lembra seu pai. Parece que estou vendo ele na minha frente.
- Eu sei o quanto isso lhe chateia...
- Não, não. Você não tem culpa. Mas a verdade é que ele me fez sofrer demais. As pessoas costumam julgar sempre os outros, sem conhecer as causas de algum gesto da gente. Mas ninguém nunca me perguntou por quê, no desespero, eu tive de deixar você ... as razões que me levaram a isso ... o inferno em que eu estava vivendo com seu pai, o que ele me fazia passar.
- Eu não estou perguntando.
Ela o encarou, em silêncio, como se não tivesse mais nada a dizer, como se os anos de separação houvessem criado entre eles um abismo já de todo intransponível.

A matriarca

Carina amava César, que amava Carina. César se casou com Carina. Só que Carina tinha uma filha de outro e não disse nada a César. Ou melhor, dizer ela disse, no dia do casamento, o que estragou a noite de núpcias (César foi tomar um porre) e a lua-de-mel. Depois as coisas se ajeitaram (só aparentemente) e Carina continuou a amar César, que deixou de amar Carina.
Carina era muito rica, herdeira de grande fortuna. Era dona de uma fábrica de brinquedos - a Mirasol -, da fábrica de calçados Carina, da Malharia Carina, todas pertencentes ao grupo financeiro Limeira Brandão. Ocorre que essa família tinha uma matriarca, Januária, mulher forte que controlava a tudo e a todos com mão de ferro. Viúva, Januária era intransigente em várias coisas, mas, acima de tudo, na vida política de Paço Alegre, há mais de trinta anos comandada por seu clã. Só que já não era fácil exercer com êxito esse comando; os filhos tentavam fugir a sua autoridade, as noras contrariadas com um domínio que as ameaçava.
Além desses problemas, havia outros, mais palpáveis, cujos desdobramentos Januária tinha de enfrentar. No momento mesmo do casamento de Carina, ela se via envolvida num deles. Para salvar a fazenda de Paço Alegre, fora obrigada a contrair enorme dívida; a primeira prestação estava por vencer, e Januária não tinha o dinheiro necessário. Aliás, o casamento da neta fora maquinado por ela. Esbarrara, contudo, num problema: o administrador geral do patrimônio de Carina, no intuito de protegê-la, exigira que o casamento se realizasse com separação de bens. Januária, que contava com o auxílio de César para conseguir, através dele, um empréstimo, via-se, assim, acuada. Mas o fato de se ver pressionada obrigava­a a lutar; era-lhe até, pode-se dizer, emulação à qual não se furtaria. Decidida, iniciou novas maquinações. Com isso, conseguiu dobrar Tiago, o administrador. César, então, foi guindado ao cargo de pessoa mais importante dentro das companhias de Carina, e Januária conseguiu, enfim, a quantia de que necessitava.
Como se comportavam, porém, Carina e César, em meio a todo esse jogo? Ela, por amor, e sempre alheia aos negócios, cedia. Aliás, seu interesse se concentrava por inteiro em algo diferente da sensaboria que lhe significava a administração de suas companhias, já que o balé era o resumo de todas as suas aspirações. Por ele seria mesmo capaz do mais absoluto sacrifício.
E ele? Como reagia? Por ambição, da maneira mais cômoda e acanalhada possível. Empregado sem voz ativa até aquele momento, se a situação o favorecia, por que não usufruí-la, deixando de lado quaisquer pruridos de moral ou consciência? Entrou assim na posse do novo cargo com a desenvoltura própria dos velhacos e, seguro do amor que Carina lhe dedicava, deu-se ao luxo de lhe fazer a exigência de abandonar o balé, não dançando mais em público, limitando-se aos exercícios e aulas na academia de Eugênia Feodorova.


OFERECEMOS ESSE CAPÍTULO A TONY RAMOS, QUE HOJE COMPLETA 62 ANOS, A JANETE CLAIR (IN MEMORIAN), POR SUA GENIALIDADE E A SUA NETA RENATA DIAS GOMES, QUE ESPERAMOS CONTINUE O TRABALHO GENIAL DE SEUS AVÓS JANETE CLAIR E DIAS GOMES.

2 comentários:

  1. José Eugênio, hoje você me surpreendeu, com esse mimo! Estou emocionada! O tempo passa e a gente vai deixando pra trás tantas lembranças boas. Aí você vem e faz uma surpresa dessas! Já estou começando a viajar no tempo! Obrigada pela oportunidade! Um beijo carinhoso.

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  2. JE, achei a idéia excelente! Não me lembro de todas as tramas; assistia por causa da Beth Savalla, mas Pai Herói ficou na minha mente como uma novela inesquecível. Está na minha listinha das 10 mais.
    Vou adorar relembrar com todos do blog.
    Como disse a Maria, vamos viajar no tempo e nos deliciar com uma obra prima.
    Deus tenha Janete Clair em bom lugar. Esta sabia fazer a coisa.
    Um abraço carinhoso.

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